MARCELO VIANA DIZ QUE "MÉRITO NÃO É PALAVRÃO"
"O matemático que comanda o Impa diz que o corte de verbas não vai incidir sobre aquilo que faz do Instituto um polo de excelência mundial"
Por: Mônica Weinberg
"O carioca Marcelo Viana assumiu o comando do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), centro de proteção internacional encravado na Mata Atlântica, no Rio de Janeiro, num momento em que severos cortes federais incidem sobre as ciências. Ele sabe que terá de refrear gastos. Mas continuará a preservar a excelência que levou o Impa ao topo mundial e à conquista da medalha Fields, o Nobel da matemática, investindo no que faz do Instituto o que é: um celeiro de cérebros de dentro e de fora do país. Aos 54 anos, trinta dos quais como pesquisador do Impa, Viana, que foi criado em Portugal (de onde vem o sotaque inconfundível) e fez pós-doutorado em Princeton, tem entre suas missões pôr de pé o prestigiado Congresso Internacional de Matemática, em 2018, quando todos os pesos-pesados da área passarão pelo Rio."
Mônica Weinberg (VEJA): "O governo federal acaba de anunciar um corte de 1 bilhão de reais na Pasta da Ciência. Até que ponto essa redução emperra avanços:?"
Marcelo Viana: "A atividade científica não pode ser ligada e desligada por tempo ilimitado. É um projeto de longo prazo, que exige continuidade para que o conhecimento se acumule, avance e seja transmitido de uma geração a outra. A ciência brasileira vem perdendo recursos nos últimos anos, o que torna mais difícil atrair jovens cérebros, estimulá-los e mantê-los atuantes aqui. O Brasil ergueu sua base científica com gigantesco atraso em relação a outros países, inclusive os da América Latina. Em cinquenta anos chegamos a um patamar razoável. Meu alerta é que é muito mais fácil destruir do que construir um sistema. E demolir a ciência de um país significa subtrair suas chances no jogo global."
Mônica Weinberg (VEJA): "Onde os cortes já tiveram impacto?"
Marcelo Viana: "O instrumento mais importante de reconhecimento ao mérito dentro do sistema federal é a bolsa de produtividade concebida pelo CNPq. Ela distingue a nata da academia por critérios objetivos, é cobiçada e competitiva. Só que o dinheiro para essas bolsas não vem acompanhando a expansão do número de doutores. O resultado é que muita gente boa está ficando sem incentivo para permanecer no Brasil. Essas pessoas preferem ir para fora, longe das mazelas. E o que as faria voltar?"
Mônica Weinberg (VEJA): "Existe uma resposta para isso?"
Marcelo Viana: "Infelizmente, não. Hoje não há como atrair um jovem que pesquisa em um paraíso científico para cair no meio deste sistema retraído, sem vagas nem boas condições de trabalho. Preocupa-me a leva de estudantes que o governo enviou para as melhores universidades do mundo por meio do programa Ciência sem Fronteiras, um investimento volumoso que só dá retorno se eles voltam, produzem e disseminam o saber aqui."
Mônica Weinberg (VEJA): "O Impa também está sofrendo com a escassez de recursos?"
Marcelo Viana: "O corte no orçamento deste ano foi de 30%, o que nos força a poupar, mas não no essencial: cérebros e pesquisa. Estou convicto de que o caminho para a academia brasileira é depender menos dos cofres públicos, encontrando maneiras de se conectar cada vez mais com o mundo privado, prática comum nos Estados Unidos e na Europa."
Mônica Weinberg (VEJA): "Por que isso é tão raro no Brasil?"
Marcelo Viana: "A cultura americana e europeia veem as instituições de ensino como parte do sistema produtivo de seus países. No Brasil, um abismo legal e ideológico separa o mundo universitário do empresarial, com claro prejuízo para ambos os lados, que pouco se falam."
Mônica Weinberg (VEJA): "Isso explica por que o Brasil é pouco inovador e fica entre os últimos países no ranking mundial de patentes?"
Marcelo Viana: "Sem dúvida: nem o setor produtivo vai à universidade procurar ajuda, nem a universidade enxerga como missão prestar serviços ao setor produtivo. Um contrassenso. A experiência internacional mostra que esse pode ser um casamento prolífero. Verdade que nunca é fácil. Certa vez, a matemática belga Ingrid Daubechies, uma das criadoras do formato JPEG, grande invento para imagens digitais, esteve no Brasil. Ela declarou: 'O mais difícil na matemática aplicada é conversar e entender o que o outro lado quer'. O fato é que, nesse caso, houve demanda, oferta, diálogo e, sim, inovação."
Mônica Weinberg (VEJA): "De que forma o Brasil acaba desencorajando o encontro entre o universo acadêmico e o privado?"
Marcelo Viana: "Tradicionalmente, os pesquisadores e suas instituições não podem auferir lucro com o resultado de seu trabalho. Lucro ainda é visto como vício, algo que desvirtua o princípio original da produção acadêmica. Só para ponderar, é preciso reconhecer que houve avanço recente no marco regulatório para ciência e tecnologia no Brasil, com a permissão para que os institutos de pesquisa ganhem dinheiro, por exemplo, disponibilizando equipamentos, como computadores e microscópios. Soa até subversivo para padrões brasileiros, mas é uma janela. Ilhas de excelência precisam cultivar e divulgar sua marca, como ocorreu com o bem-sucedido caso da Embrapa."
Mônica Weinberg (VEJA): "O que há de singular no exemplo da Embrapa?"
Marcelo Viana: "A Embrapa foi decisiva ao introduzir a extraordinária ideia de chacoalhar um setor inteiro da economia de um país por meio da ciência. A produtividade no campo brasileiro se divide entre antes e depois dela. Precisamos entender de uma vez por todas na academia nacional que o que fazemos não pode se encerrar dentro de nossas próprias paredes."
Mônica Weinberg (VEJA): "As universidades brasileiras ainda torcem o nariz para a presença de estrangeiros?"
Marcelo Viana: "Essa situação vem melhorando, mas ainda pesa uma visão ultrapassada: quem vem de fora rouba vagas dos que estão aqui. É uma percepção profundamente corporativista. Vale olhar para os Estados Unidos, donos da ciência mais globalizada do planeta. Muitos catalisadores do processo ali carregam sobrenomes estrangeiros, e foi assim que o país garantiu o topo, atraindo os melhores de toda parte. Já o Brasil ainda faz concursos para recrutar professores universitários só em português, uma barreira à vinda de talentos de outras nacionalidades. Os escandinavos e os alemães dão tanta importância a ter profissionais das melhores instituições de ensino que oferecem até a possibilidade de eles ministrarem aulas em inglês. Quanto mais cosmopolita a academia de um país, mais inserida ela estará no competitivo tabuleiro global. Buscamos isso no Impa de forma radical, desde a fundação, nos anos 1950."
Mônica Weinberg (VEJA): "O Brasil ainda figura entre os piores do mundo na sala de aula, inclusive em matemática. Qual o primeiro passo para deixar a zona do atraso?"
Marcelo Viana: "As histórias de desenvolvimento rápido mostram que, antes de tudo, um país precisa fazer escolher e fixar-se nelas, sem desviar o foco no sabor de governos. Outra lição que se depreende da experiência internacional é que o atalho para o crescimento reside em um investimento casado em educação e ciências. Uma boa universidade não deve apenas transmitir conhecimento, mas produzi-lo para estar na vanguarda, e só poderá fazer isso com uma turma talentosa e bem formada no ensino básico. As escolas, por sua vez, recebem de boas universidades professores de alto nível. Esse ciclo virtuoso explica a ascensão da economia de países como Finlândia e Coreia do Sul."
Mônica Weinberg (VEJA): "O que se comprovou sobre a relação entre educação e ciências e o PIB?"
Marcelo Viana: "Gosto de citar uma pesquisa que mede isso em matemática. Segundo um estudo feito na Inglaterra, uma boa base educacional e científica na área aumenta o PIB do país em cerca de 10%. Isso ocorre porque, graças à matemática de excelência, a produtividade se eleva em campos como a computação e as engenharias, que fazem girar a roda da economia criando empregos muito acima da média."
Mônica Weinberg (VEJA): "Com apenas 10% dos estudantes brasileiros aprendendo o minimamente esperado da matemática escolar, como alcançar tal feito?"
Marcelo Viana: "Fico estarrecido com esses 10% e mais estarrecido ainda com o fato de que isso não resulte numa ordem de parar todas as máquinas e revirar as escolas e as universidades atrás de uma solução já. Um joga a culpa para cima do outro, e pouco se faz. Com certeza a formação dos professores precisa ser mexida drasticamente. Os alunos entram com uma base fraca na faculdade e vão lecionar repetindo o mesmo modelo falido que aprenderam como estudantes. O nível é tão baixo que, outro dia, soube de uma professora que não ensinava geometria na sala de aula porque desconhecia a matéria. E não é exceção."
Mônica Weinberg (VEJA): "O senhor vem participando de debates sobre o novo currículo de matemática. Qual a sua avaliação sobre a proposta?"
Marcelo Viana: "Por razões ideológicas, o Brasil chegou tarde à discussão de um currículo, mas é bom que tenha enfim chegado. Vejo esse documento como um ponto de partida que precisará ser aprimorado. Que o Japão nos inspire: lá, uma mesma coleção de livros de matemática ensina crianças de todas as séries há mais de um século. Desde então, a cada ano um grupo de sábios se debruça sobre aqueles tomos para atualizá-los e melhorá-los com o propósito de atender aos novos tempos."
Mônica Weinberg (VEJA): "O que precisa, afinal, ser aprimorado no currículo de matemática sugerido pelo MEC?"
Marcelo Viana: "Estamos atrás do currículo australiano, por exemplo, mas não adianta traduzi-lo e implantá-lo aqui. Precisamos de algo ambicioso, porém realista, que espelhe nossas possibilidades concretas. Sinto falta de mais estatística, ciência que progrediu muito no século XX. Currículos escolares padecem e certa inércia. No século XX, ensinava-se muito afora basicamente a matemática do século XVIII. O Brasil deve preocupar-se em não ter um novo currículo."
Mônica Weinberg (VEJA): "Como tornar a matemática atraente para os alunos?"
Marcelo Viana: "Matemática é difícil tanto de ensinar como de aprender porque lida com pensamento abstrato. Não dá para ligar e desligar o cérebro, como ao assistir a uma novela. A Olimpíada Brasileira de Matemática, organizada pelo Impa, vem sendo bastante didática quanto ao que funciona. Ela traz problemas e desafios no lugar da repetição de fórmulas e instaura a meritocracia de forma objetiva. Em nossas escolas, mérito é ainda palavrão. A lógica vigente é que todos devem ser tratados de nodo geral - uma falácia, considerando-se que as pessoas diferem naturalmente umas das outras. Na prática, talentos ficam à deriva, esperando por estímulos que não vêm."
Mônica Weinberg (VEJA): "A medalha Fields, o Nobel da matemática, conquistada pelo carioca Artur Avila, foi um divisor de águas?"
Marcelo Viana: "Ela ajuda a colocar o Impa e o Brasil no mapa da matemática, e mais: fez com que algumas crianças brasileiras enxergassem pela primeira vez a matéria com curiosidade. É um passo. Na Coreia do Sul, onde Avila recebeu a honra, chamou minha atenção o crachá pendurado no pescoço da garotada. Ele dizia: 'Sonho com a medalha Fields'."
A entrevista acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2 475 - Ano 49 - nº 17, págs. 15, 18 e 19. 27 de abril de 2016. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e a Editora Abril.
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