DOIS MITOS E UM PARECER
"O dia em que Rubem salvou Paulo da burocracia nacional"
"Em 6 de junho de 1979, após 15 anos de exílio, Paulo Freire pôde voltar a pisar em solo brasileiro. O desembarque, ainda de anistia (que só sairia dois meses depois), ganhou contornos de ato público, reunindo estudantes, políticos e intelectuais no aeroporto. Teria contado a favor do educador uma carta enviada ao Ministério das Relações Exteriores por representantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, manifestando o interesse de ambas em contratá-lo. Emocionado, Freire declarou ao jornal O Globo que não queria emitir opinião sobre os temas sensíveis ao país naquele momento. Precisava, antes de tudo, reaprender o Brasil.
Não seria necessário muito tempo para perceber que a aprendizagem incluiria uma descida ao labirinto da burocracia pública. A promessa da Unicamp se realizaria apenas mais de um ano depois. Diante da pressão de alunos e professores, a reitoria usava a falta de recursos para justificar a demora. Com a aposentadoria de uma docente, isso já não era mais desculpa. Assim, em 09 de junho de 1980, Paulo Freire começou a lecionar na Faculdade de Educação.
Mas a novela para a contratação do maior nome da Educação brasileira apenas começava. O desfecho veio só em 1985, e ganhou projeção graças ao genial parecer de Rubem Alves a favor de Freire. Até lá, o educador pernambucano viveu em uma espécie de limbo contratual.
Na época, a Unicamp ainda não realizava concursos públicos. Os docentes eram admitidos por indicação e passavam um período probatório até a efetivação. A chegada do autor de Pedagogia do Oprimido animou a comunidade acadêmica. 'As primeiras palestras do professor eram verdadeiros happenings, chegando a reunir mais de 500 pessoas', afirma Eduardo Chaves, ex-diretor da Faculdade de Educação e responsável pela abertura do processo de contratação de Paulo Freire. 'Para os alunos, foi um grande ganho a universidade ter nos seus quadros em educador com reconhecimento internacional. Me lembro da euforia e da disputa para conseguir uma vaga nas salas de aulas', conta Débora Mazza, ex-aluna de Freire e professora do Departamento de Ciências Sociais e Educação. O método dialógico das aulas, que pressupunha envolvimento ativo por parte dos alunos, atendia a um anseio de participação que extrapolava as questões didáticas e assumia uma conotação política - vivia-se o declínio do período ditatorial com a 'distensão lenta, gradual e segura' promovida por Ernesto Geisel.
A contratação de Freire pode ter sofrido reverberações desse processo. Em 1981, mesmo sem contrato definitivo, ele havia sido o mais votado pela comunidade acadêmica para ser reitor - era a primeira vez que uma universidade brasileira recorria ao processo democrático para escolher seu dirigente máximo. A preferência, entretanto, foi solenemente ignorada pelo conselho de diretor (colegiado dos diretores das unidades e representantes do governo do estado) e por Paulo Maluf, então governador de São Paulo, que dava a palavra final. Sob protestos de representantes do corpo docente e discente, Maluf ratificou a escolha de José Aristodemo Pinotti, da Faculdade de Ciências Médicas.
Engavetado até 1982, o dossiê de contratação foi retomado sob exigências kafkianas. Uma obscura seção de Registros e Arquivos do Corpo Docente solicitou o 'plano de pesquisa do interessado' - apesar de ele dar aulas na instituição há dois anos - e pediu a revalidação interna do diploma de livre-docência de Freire pela atual Universidade Federal de Pernambuco, obtido por notório saber em 1961. Não importavam seus quatro títulos de atuação como professor nas universidades de Harvard e de Genebra ou os cursos e seminários conduzidos em cerca de 40 instituições de ensino superior ao redor do mundo. A burocracia amontoava exigências. A última foi a chancela de uma 'comissão de notáveis' à trajetória do educador. Entre os pareceristas indicados estava Rubem Alves.
Teólogo, filósofo, poeta e escritor, Alves ocupava desde 1974 a cadeira de professor titular na Unicamp. Suas crônicas na imprensa e a originalidade de seu pensamento acadêmico culminavam admiradores entre os estudantes de pedagogia e docentes da Educação Básica. O caráter popularizador de seus escritos conquistava a plateia, mas era visto com ressalvas pela academia. 'Muitos diziam que ele era um teólogo escrevendo sobre Educação, mas ele botou o dedo em quase todas as feridas da área', opina Chaves."
"Os três pareceristas foram favoráveis à efetivação do 'candidato' Freire (leia trechos de dois deles acima). O que distingue o texto de Alves é o tom de inconformismo. Na prática, ele se nega a dar um parecer e faz, na linguagem simples e contundente de seus escritos, um libelo contra a burocracia. 'Há (...) certas questões sobre as quais emitir um parecer é quase uma ofensa', pontua. Dá a discussão por encerrada com uma provocação: 'Não posso pressupor que este nome (Freire) não seja conhecido na Unicamp. Isso seria ofender aqueles que compõem seus órgãos decisivos.' Da data da redação do parecer até a publicação da contratação no Diário Oficial, um ano se passou.
O documento teve circulação restrita em dezembro de 2014, quando apareceu no periódico Pro-posições, que dedicou uma edição para discutir o legado da obra de Freire. Apenas os envolvidos e pessoas próximas aos educadores tiveram acesso a ele na época. 'É um parecer muito bonito. Foi importante para marcar essa antipatia que tiveram por Paulo e pelo pensamento dele. A rejeição na Unicamp foi uma questão ideológica', opina Ana Maria Araújo Freire, professora aposentada da PUC-SP e viúva do educador.
Pessoas ligadas aos professores enxergam semelhanças no estilo. 'Eles eram heterodoxos. A academia é muito ortodoxa. Então, eu acho que a resistência a eles vem da dificuldade de circunscrevê-los em gavetas estritas da linguagem acadêmica', opina Débora. Outra característica compartilhada era a radicalidade de sua ideias. 'Eu coloco ambos dentro dessa perspectiva emancipatória da Educação', diz Moacir Gadotti, professor aposentado da Universidade de São Paulo - USP e presidente de honra do Instituto Paulo Freire, que fora seu colega na Unicamp. 'A ideia de que Educação tem a ver com projeto de vida, com a construção da liberdade, da autonomia e da independência é o ponto de sintonia das obras dos dois', completa Chaves. Além do insólito encontro promovido pelos meandros da burocracia, o caráter e a produção dos pensadores também são referências para aqueles que ousam em pensar numa Educação transformadora."
Texto e informações retirados do site NOVA ESCOLA. Todos os direitos reservados a NOVA ESCOLA. (Acesso: 07/08/2015).
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