CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA MUNDO!


"ALGO DE PODRE NO FACEBOOK"
"Em uma trama que envolve poder, tecnologia e uso indevido de dados privados, uma empresa de marketing eleitoral derruba as ações da rede social e escancara novos riscos para a democracia"


Por: Duda Teixeira 
        Filipe Vilicic

"Mark Zuckerberg está preocupado com as eleições no Brasil. E uma das razões para essa inquietude é o que o fundador, CEO e maior acionista do Facebook está perdendo dinheiro, muito dinheiro. 'Haverá uma grande eleição no Brasil, além de outras votações ao redor do mundo, e você pode apostar que estamos realmente empenhados em fazer tudo o que for necessário para garantir a integridade dessas eleições no Facebook', disse Zuckerberg em entrevista ao canal CNN na quarta-feira 21. Que mundo esse em que um empresário americano se vê obrigado a vir a público para prometer a lisura do rito democrático em outros países e ainda se sai com uma expressão ('eleições no Facebook') constatando que a disputa eleitoral se dará no âmbito do negócio que ele criou? Pois esse é um mundo em que as empresas de marketing político sabem mais sobre os gostos, os medos, os preconceitos, as opiniões, as vulnerabilidades, as inclinações e os hábitos dos eleitores do que os próprios eleitores. É um mundo em que o simples ato de curtir a postagem de um amigo pode dar munição a estrategistas emprenhados em incentivar a polarização e a intolerância para fins eleitorais. É um mundo em que as plataformas on-lines criadas para unir as pessoas tornam-se ferramentas que, em última análise, ameaçam a democracia."



"Eis como começou a preocupação de Zuckerberg. No fim de semana dos dias 17 e 18 de março, o jornal americano The New York Times e os ingleses The Guardian e Observer revelaram que os dados pessoais e detalhes sobre atividades on-line de 50 milhões de perfis do Facebook foram coletados e utilizados para fins eleitorais, sem que os usuários tivessem dado autorização para tal. As informações foram obtidas entre junho e agosto de 2014 por meio de um aplicativo desenvolvido por Aleksandr Kogan, um psicólogo da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e inspirado nas pesquisas de outro estudioso da mesma instituição, Michal Kosinski. O Facebook consentiu que o aplicativo fizesse a coleta de dados em sua plataforma para fins acadêmicos. Kogan, porém, não se limitou aos estudos: vendeu os dados à Cambridge Analytica, uma empresa que tinha em seus quadros Steve Bannon, o ex-estrategista amalucado da campanha de Donald Trump e que recebera um investimento de 15 milhões de dólares de Robert Mercer, um bilionário conhecido por financiar o movimento conservador da direita alternativa (alt-right, em inglês) nos EUA."



"As informações colhidas no Facebook foram cruzadas com registros de eleitores e usadas para produzir peças de propaganda on-line pela equipe do senador Ted Cruz, pré-candidato nas primárias republicanas para a Presidência, em 2015, e, no ano seguinte, pela campanha vitoriosa de Trump. A julgar pelo tipo de conteúdo que circulou massivamente nas redes sociais no ano eleitoral, acredita-se que os dados pessoais vendidos por Kogan à Cambridge Analytica serviram para divulgar abertamente informações tendenciosas e notícias a milhões de cadastrados no Facebook (veja quadro abaixo). Serviram, portanto, para soterrar a rede com lixo político."



"Até esse ponto da narrativa, o que se tem é um pesquisador e uma empresa de marketing político passando a perna no Facebook e em seus usuários. 'É um procedimento muito comum: empresas desenvolvedoras que usam aplicativos como isca de informações pessoais para tentar vendê-las sem autorização do Facebook', diz o advogado Eduardo Magrani, coordenador da área de direito e tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) do Rio de Janeiro. Mas as revelações não pararam por aí. O programador canadense Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica, disse aos jornalistas americanos e ingleses que o Facebook descobrira já em 2015 que Kogan havia repassado ilegalmente os dados dos perfis on-line para uso eleitoral. Os advogados do Facebook exigiram, então, que Kogan e a Cambridge Analytica se comprometessem por escrito a destruir os dados. Nada além disso. O Facebook não se deu ao trabalho de fazer uma vistoria técnica - algo previsto nos termos que os desenvolvedores aceitam ao incluir seus aplicativos na rede social - para se assegurar que as informações haviam sido realmente apagadas. Mas o mais grave é que em nenhum momento o Facebook avisou seus milhões de usuários de que seus dados tinham sido desviados indevidamente para fins eleitorais. Mais: apesar de, em 2015, ter reduzido a quantidade de informações que os aplicativos são capazes de coletar de seus usuários, o Facebook só baniu a Cambridge Analytica de sua plataforma recentemente, depois que ficou sabendo da disposição de Wylie de denunciar o caso publicamente."



"Para completar a tempestade perfeita que se abateu sobre o Facebook, na terça-feira 20, o Channel 4, da TV inglesa, divulgou uma reportagem em que os dois jornalistas se fazem passar por clientes do Sri Lanka para se encontrar com executivos da Cambridge Analytica, que não sabiam que estavam sendo filmados. No vídeo, entre os serviços prestados para prejudicar adversários políticos, além da coleta de dados de eleitores, eles oferecem a contratação de prostitutas para conseguir informações confidenciais ou criar escândalos sexuais. Outra opção seria enviar um empresário estrangeiro para simular um pagamento de propina de candidatos opositores e gravar a transação em vídeo, para depois divulgá-lo nas redes sociais. Ou seja: tudo bandidagem de grossa. Uma das pessoas flagradas nas imagens é o CEO da Cambridge Analytica, Alexander Nix. 'Nós estamos acostumados a operar por meio de diferentes veículos, nas sombras', disse Nix, que foi suspenso da empresa no mesmo dia. Em outro trecho do vídeo, um dos diretores diz que a Cambridge Analytica está estendendo suas atividades para o Brasil (veja quadro mais abaixo)."



"Apesar de o Facebook não estar vinculado a nenhuma dessas práticas de podridão eleitoral, o fato de a reportagem do Channel 4 ter sido divulgada dias depois das revelações feitas por Christopher Wylie aumentou a impressão generalizada de que a empresa é permissiva com os dados de seus usuários, pouco criteriosa ao definir quem pode ter acesso a eles - além disso, quando um desvio acontece, ela tenta corrigir sem muito esforço e depois faz tudo para manter a coisa toda sob um manto de silêncio."



"Os efeitos foram quase imediatos. Ao longo da semana, as ações do Facebook derreteram-se em 50 bilhões de dólares, o equivalente ao valor de mercado da General Motors ou a duas vezes o PIB anual do Paraguai. Zuckerberg perdeu, individualmente, 6 bilhões de dólares em dois dias. A agência reguladora de comércio dos Estados Unidos abriu uma investigação sobre a empresa. Em Londres, o Parlamento ameaçou convocar Zuckerberg a prestar esclarecimentos. 'É hora de ouvir um executivo sênior do Facebook com autoridade para dar uma explicação correta sobre a falha catastrófica', disse o parlamentar que preside a comissão sobre temas digitais, Damian Collins. No âmbito da União Europeia, o Facebook pode ser enquadrado em uma lei de proteção de dados que passa a vigorar em maio, com efeito retroativo, e prevê uma multa que pode chegar a 4% do faturamento global da empresa - algo em torno de 1,6 bilhão de dólares. Na internet, surgiu até um movimento de pessoas que prometem apagar o perfil na rede social. Entre os defensores dessa medida estava Brian Acton, cofundador do WhatsApp (vendido ao Facebook por 22 milhões de dólares em 2014). 'Chegou a hora. #DeleteFacebook', publicou ele em uma rede social, o Twitter. O movimento está tendo adesões, mas ainda não é possível precisar sua dimensão."



"Houve ainda mais lenha na fogueira. O caso Cambridge Analytica estourou em meio as investigações do procurador especial Robert Mueller sobre a interferência russa nas eleições americanas, no que ficou conhecido como Russiagate. No mês passado, Mueller indiciou treze cidadãos russos pela atuação em uma fábrica, com sede em São Petersburgo, de perfis falsos que usavam as redes sociais, e em especial o Facebook, para manipular o eleitorado americano. O pesadelo está completo se vier à tona que há uma relação entre o caso Cambridge Analytica e o Russiagate: o próprio Wylie afirmou que, em julho de 2014, recebeu um e-mail da Lukoil, a segunda maior produtora de petróleo da Rússia. Apesar de ela ser uma empresa privada, seu diretor, Vagit Alekperov, é amigo do presidente Vladimir Putin. 'Isso não fazia sentido para mim', disse Wylie. 'Por que uma companhia russa de petróleo teria interesse em informações dos eleitores americanos?'. Em retrospecto, a pergunta parece já trazer a resposta."



"No meio digital, há uma regra informal que dita os negócios: 'Se você não pagou por um produto, você é o produto'. Segundo um estudo da Universidade Stanford, apenas 3% das pessoas leem os termos de serviço de um site antes de utilizá-lo. No Facebook, está escrito: 'Quando você usa um aplicativo, ele pode solicitar sua permissão para acessar seu conteúdo e informações que outras pessoas compartilharam com você'. Esses dados podem ser empregados para fins comerciais, acadêmicos ou em pesquisas. É com base nas atividades e interações dos usuários na rede social que o Facebook consegue personalizar os anúncios pagos e com isso garantir os quase 13 bilhões de dólares de faturamento que obteve no último trimestre de 2017. E, por isso, tem capacidade para oferecer aos usuários uma plataforma gratuita, pois sua receita vem de outra fonte."



"É espantoso o que se consegue descobrir sobre uma pessoa simplesmente analisando o seu comportamento na rede social. A pesquisa feita em 2007 por Michal Kosinski e pelo estudante David Stillwell, a mesma que serviu de inspiração para Kogan, dividiu os usuários do Facebook segundo cinco traços psicológicos (abertura, conscientização, extroversão, estabilidade emocional e agradabilidade). Com base nos resultados e nos modelos estatísticos, eles descobriram, por exemplo, que pessoas que curtiram a página 'Eu odeio Israel' tinham uma tendência maior a gostar de chocolate KitKat ou de tênis Nike. Esse tipo de informação aparentemente singela e desconexa vale ouro na mão de alguém disposto a direcionar o debate político por meio da manipulação das emoções e das vulnerabilidades psicológica dos eleitores. Essa era a matéria-prima da estratégia on-line da Cambridge Analytica."



"Os algoritmos da empresa calculavam qual mensagem seria mais adequada para convencer cada eleitor a mudar o voto - ou a instigá-lo a sair de casa para votar, algo essencial em um país onde a participação no pleito facultativa - e com que frequência ela deveria aparecer. A metodologia subverte o processo político tradicional, em que um candidato expõe as ideias e os eleitores precisam se posicionar sobre elas. 'O que a Cambridge Analytica fez foi direcionar o voto usando dados culturais, como os padrões de consumo, a religião, o time de futebol, as preferências culinárias. É totalmente antiético', diz o sociólogo Marco Ruediger, diretor de análise de políticas públicas da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro."


"Com as redes sociais, as campanhas tornaram-se uma exploração desavergonhada e individualizada dos sentimentos dos eleitores, através de abordagens subliminares. Como consequência, as chances de um entendimento entre as diversas partes diminuem e a polarização aumenta. 'Se não encontrarmos um mecanismo para evitar a polarização de mensagens que fragmentam o eleitorado nas redes sociais, a democracia ficará ameaçada', diz o matemático belga Paul-Oliver Dehaye, fundador de uma startup que ajuda as pessoas a recuperar seus dados pessoais on-line e um dos primeiros a publicar estudos sobre o modus operandi da Cambridge Analytica. 'Na internet, as pessoas não precisam enfrentar discussões difíceis e simplesmente se isolam com outras que têm a mesma opinião'. O que empresas como a Cambridge Analytica é manipular e intensificar esse fenômeno, matando o debate político.
Uma atuação tão invasiva como a da Cambridge Analytica nos Estados Unidos teria chances escassas de acontecer no Brasil nas eleições deste ano por uma razão técnica. Como o Facebook dificultou em 2015 o acesso dos desenvolvedores aos dados sobre o comportamento dos usuários, é praticamente impossível reunir uma gama de informações no universo brasileiro tão ampla quanto a coletada por Kogan nos EUA. Além disso, a venda de banco de dados no Brasil é mais restrita que nos EUA. 'Até onde eu sei, ninguém aqui tem uma base de dados com perfis psicológicos como a Cambridge Analytica obteve. Não há mais como obter algo assim', diz Rodrigo Helcer, presidente da Stilingue, empresa brasileira que faz monitoramento da internet com o uso da inteligência artificial. 'Apesar disso, temos outros problemas, como a disseminação de fake news e o uso de robôs para ajudar a espalhar esse material enganoso', diz Helcer."


"Mark Zuckerberg fez, na quarta-feira 21, uma meia-culpa em texto publicado em seu perfil do Facebook e dirigido ao usuário da rede: 'Temos a responsabilidade de proteger os seus dados e, se não podemos, não merecemos servi-lo. Tenho trabalhado para entender exatamente o que aconteceu e como garantir que isso não volte a acontecer. A boa notícia é que as ações mais importantes para evitar que essa situação não ocorra novamente já foram realizadas há anos. Mas também erramos, há mais a fazer, e temos de fazê-los'. Em seguida, anunciou algumas medidas para restringir o acesso de terceiros a dados de perfis. O problema é que, quanto mais o Facebook cede aos apelos de proteger dados dos usuários, mais atrapalha o próprio negócio. Como a plataforma é gratuita para os mais de 2 bilhões de usuários ao redor do mundo, quem paga as contas são as organizações que divulgam suas atividades e seus anúncios no Facebook. Tomar uma medida drástica, como proibir os anúncios políticos, tiraria uma importante fonte de receitas da rede - razão pela qual o escândalo não é exatemente uma surpresa. Além disso, a divulgação livre de ideias é um dos pré-requisitos da democracia. O desafio é encontrar um equilíbrio entre privacidade e liberdade, evitando que ambas sejam dilaceradas."
*Com reportagem de André Lopes



A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2575 - Ano 51 - nº 13. 28 de março de 2018. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.


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