CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA CIÊNCIA!


"UM CHOQUE NA MEMÓRIA"
"Técnica americana, que consiste na implantação de eletrodos no cérebro de pacientes com déficit de memória, consegue recuperar até 15% da capacidade de lembrar"


Por: Natalia Cuminale

"Usas um vestido/ Que é uma lembrança/ Para o meu coração./ Usou-o outrora/ Alguém que me ficou/ Lembrada sem vista./ Tudo na vida/ Se faz por recordações./ Ama-me por memória'."


"O poema de Álvaro de Campos, um dos heterônimos mais conhecidos do escritor português Fernando Pessoa (1888-1935), remete ao conceito universal de que a memória é o que nós somos. Sem que tenhamos a possibilidade de recordar, a existência se esvazia por completo. A vida se sustenta com base nas ideias do presente, nas referências do passado e na forma como processamos e armazenamos as nossas experiências. Por isso, ninguém quer perder a memória, todos querem melhorá-la. Pois um novo e ousado procedimento médico foi capaz de impulsionar o mecanismo que forma e preserva as lembranças, um feito inédito na medicina. Eletrodos implantados em uma área específica do cérebro recuperaram 15% da memória dos pacientes. A taxa equivale ao que se perde em dois anos e meio com a degeneração provocada pela doença de Alzheimer. Ou ao que se esvazia naturalmente em dezoito anos de vida de uma pessoa saudável. Traduzindo: que tem 56 anos hoje pode, em tese, voltar a ter a mesma memória que tinha aos 38 anos. Disse a VEJA Youssef Ezzyat, psicólogo da Universidade da Pensilvânia, autor principal da técnica: 'O método abre caminho de possibilidades para auxiliar as pessoas com problemas de memórias'. Publicado na revista Nature Communications, o trabalho tem sido considerado por especialistas do mundo todo com um dos feitos mais promissores ocorridos na neurologia nas últimas décadas, desde a disseminação dos aparelhos de ressonância magnética que revelam o cérebro em atividade."


"A dinâmica do método fascina. Dezenas de eletrodos minúsculos, de 2,3 milímetros cada um, foram implantados no córtex lateral de 25 pacientes. O córtex lateral é a região do cérebro associada ao procedimento de informações. A cirurgia para a implantação dos eletrodos dura, em média, três horas. Em seguida, os participantes foram orientados a memorizar uma lista com doze palavras aleatórias, como 'bala', 'doce' e 'carro'. Cada vocábulo foi exibido em uma tela durante dois segundos. Pediu-se a todos os pacientes, então, que fizessem contas matemáticas simples, tarefa cujo único objetivo era distraí-los da anterior. Na sequência tinham de dizer aos pesquisadores de quais palavras conseguiam se lembrar. Durante todo o procedimento, a atividade cerebral dos pacientes era registrada pelos eletrodos. Com isso, os cientistas conseguiram definir dois padrões de ondas cerebrais: um para os momentos em que a memória funcionava bem, e o outro para quando ia mal. A partir daí, os eletrodos foram programados para liberar pequenos choques elétricos no cérebro do paciente (que não sente nada) sempre que sua onda cerebral não funcionasse bem. Resultado: as lembranças melhoraram em 15%."





"O procedimento ainda é experimental e deverá ser realizado em um número maior de pessoas para que se verifiquem sua real segurança e eficácia. É um processo que deve demorar ainda mais uma década para ser concluído. 'Mas já podemos dizer que se trata de um feito inédito para os estudos de melhora de memória', diz o neurologista Renato Anghinah, da Universidade de São Paulo. Aqui, um parêntese importante. Todos os pacientes que se submeteram ao estudo tinha epilepsia, doença que costuma provocar deficiências de memória. No entanto, os efeitos da técnica dos eletrodos, teoricamente, poderiam ser igualmente positivos também em pessoas saudáveis."



"O uso de descargas elétricas para melhorar a saúde do cérebro é coisa antiga. O médico grego Cláudio Galeno (129-216) encostava peixes-elétricos no crânio dos pacientes para tratar dores de cabeça crônicas. Com seu método, Galeno intuiu o que só seria confirmado no século XVIII: que o organismo pode ser estimulado por impulsos elétricos - o princípio de ação dos eletrodos. Esses dispositivos são usados desde a década 90 para tratar doenças neurológicas, como Parkinson e epilepsia. Atualmente são estudados para o tratamento de pacientes com depressão refratária a medicação. Implantados no cérebro, ficam ligados a uma bateria externa que libera choques em áreas que variam conforme a natureza da doença. O conceito por trás da técnica é que as pequenas descargas elétricas são capazes de interromper atividades cerebrais desreguladas, permitindo, assim, a predominância de atividades cerebrais em regiões com processamento normal. Cientistas já arriscam imaginar os próximos passos. Diz o neurocirurgião Arthur Cukiert: 'No futuro, poderemos avançar a ponto de conseguir os mesmos efeitos com uma tecnologia não invasiva, que aja de fora do cérebro'."


"A memória é uma das funções mais complexas do cérebro. Isso porque ele está associada a dezenas de áreas do órgão, sendo o hipocampo uma das principais. Em conjunto com o córtex, ele garante que o organismo colete, conecte e crie as lembranças a partir de experiências. É, portanto, o primeiro passo para a formação da memória. Quem quer que rememore o seu primeiro beijo possivelmente se lembrará das palpitações causadas pela ansiedade, do ambiente em que se encontrava, do perfume e das características físicas do parceiro. O fato de a experiência envolver tantos sentidos ajuda a fazer com que, mesmo alguns bons anos depois, a lembrança continue ali, armazenada. Os atores essenciais nesse processo são as conexões elétricas transmitidas pelos neurônios - as chamadas sinapses, que codificam e armazenam a memória."


"Mais recentemente, a medicina identificou que o mecanismo da memória é ainda mais intrincado do que se imaginava. Ele está associado também aos hábitos de vida. Hoje, sabe-se que 30% dos casos de perda de memória grave podem ser evitados com comportamentos saudáveis. Há seis meses, a Academia Americana de Neurologia passou a recomendar exercícios físicos para prevenir a perda de memória - como 150 minutos semanais de caminhada, por exemplo."


"A atividade física estimula o funcionamento do hipocampo. Já a privação de sono tende a provocar lapsos de memória - uma noite maldormida é capaz de afetar temporariamente a comunicação entre os neurônios (veja quadro abaixo). Ainda há controvérsia entre especialistas sobre a eficácia de atividades que pregam técnicas de memorização para retardar a perda de lembranças, como o jogo de xadrez ou sistemas de aprendizagem como o Kumon. Mas um novo estudo, publicado na revista Sociedade Americana de Geriatria, descobriu que esses hábitos podem, sim, ajudar a memória, só que em situação mais específica, quando ela já está afetada por um transtorno cognitivo leve - o estágio entre o envelhecimento cerebral normal e a demência. Dificilmente, no entanto, essas atividades poderiam contribuir para reverter a perda natural de lembranças. O problema está, mais uma vez, na complexidade da formação da memória. 'Não há um exercício suficientemente completo para abranger todas as variações da memória. É possível melhorá-la pontualmente', diz Paulo Bertolucci, chefe do setor de Neurologia do Comportamento da Universidade Federal de Medicina, em São Paulo."


"Esquecer é algo natural. Todo aquele que tiver uma vida longa em algum momento se queixará de ter ficado com 'uma palavra na ponta da língua'. A chave de casa some, a carteira não está no lugar e o nome das pessoas desaparece repentinamente. A falta de memória saudável é sintoma secundário de outros problemas. Antes de tudo, pode ser desatenção. Se um indivíduo não se importar com o lugar onde deixou o casaco, seu cérebro também não vai se preocupar em arquivar essa informação. Os lapsos podem ter a ver ainda com ansiedade, depressão, stress e abuso de álcool. Aos 60 anos, por causa do desgaste natural dos neurônios, mais da metade dos adultos apresenta dificuldades de memória que afetam o dia a dia em algum grau. Mas isso não é necessariamente sinal de problemas graves, como a doença de Alzheimer."


"O mecanismo das lembranças é um tema debatido desde a Antiguidade. Sócrates, conforme relata Platão em Fedro, lamentou a polarização da escrita porque, segundo ele, a substituição do conhecimento acumulado no cérebro pela palavra desenhada tornaria a mente preguiçosa e prejudicaria a memória. 'Essa descoberta provocará nas almas o esquecimento do quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque, confiadas na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças a esforços próprios, que obterão as recordações', disse. Bem mais adiante, o escritor português José Saramago retorquiu ao filósofo grego em seu livro de crônicas A Bagagem do Viajante, publicado originalmente em 1973: 'Se passo as minhas lembranças ao papel, é mais para que se percam (em mim) minutos de ouro, horas que resplandecem como sóis no céu tumultuoso e imenso que é a memória. Coisas que são também, com o mais, a minha vida'. Sócrates se preocupava com a influência do papel sobre a memória, mas nunca imaginaria o poder dos eletrodos sobre ela. Se pudesse fazê-lo, talvez levantasse outras questões: os implantes cerebrais poderão resultar em classes diferentes de cidadãos, os de memória aprimorada e os 'normais'? E se, em algum momento, eles influenciarem pensamentos e comportamentos? Por outro lado: podemos estar subjulgando a importância do esquecimento?"


"Na ficção, a memória tem sido instrumento de roteiros extraordinários. Um exemplo é o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, do diretor Michel Gondry. Lançado em 2004, o longa conta a história de Clementine, a personagem vivida por Kate Winslet que se submete a um procedimento experimental para apagar da memória o ex-namorado Joel, interpretado por Jim Carrey. Desconsolado, Joel decide fazer o mesmo. Mas, quando as suas lembranças começam a se esvanecer, ele percebe que ainda ama Clementine - e tenta desesperadamente inverter o processo. A vida se faz por memórias e, sem elas, sobra o vazio. A possibilidade de estendê-las por mais tempo é a possibilidade de prolongar o bom da vida."


A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2588 - Ano 51 - nº 26. 27 de junho de 2018. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.


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