CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA POLÊMICA!


"O DIREITO DE CADA UMA"
"Ação no STF propõe que o aborto até doze semanas de gestação deixe de ser considerado crime. Não é uma questão de ética nem de religião - é de vida ou morte"


Por: Luisa Bustamante
        Fernando Molica
        Thais Navarro

"Assunto delicado, daqueles que fazem os políticos suar frio e sair pela tangente, a liberação da prática do aborto no Brasil chegou ao prédio de Brasília onde aportam todas as decisões relevantes do país nos últimos tempos: o Supremo Tribunal Federal. Ao longo de dois dias, sessenta representantes de diferentes setores da sociedade participaram de audiências públicas no plenário para expressar sua posição sobre o tema e pôr em marcha o julgamento de uma ação que, ao mesmo tempo, questiona a constitucionalidade de dois artigos do Código Penal que punem a prática do aborto e defende a descriminalização do procedimento até a 12ª semana de gravidez. Sendo o STF o guardião da Constituição, coube a ele mexer no vespeiro - o que não deixa de ser promissor. Com a questão examinada sob a letra fria da lei, que é impermeável às paixões e às polêmicas que o assunto desperta, é possível que o Brasil tenha a chance de encarar a realidade. E a realidade é que, no país, cerca de 500 000 mulheres interrompem a gravidez todos os anos, e a cada dois dias uma mulher morre de complicações decorrentes de procedimentos malfeitos."


"Falar de aborto é mexer com emoções, com convicções transformadas em verdades pétreas, em um cenário em que o certo e o errado são difusos e acirram divisões. Na Argentina, país movido a mobilizações populares, a rejeição pelo Senado, na quinta-feira 9, de um projeto de descriminalização do aborto foi recebida com lágrimas e desespero nas ruas tomadas por manifestantes que encaram a derrota como uma tragédia, enquanto os defensores da criminalização celebram com sorrisos e aplausos o que consideram uma vitória espetacular. A força da onda pró-aborto desaguou o Brasil, onde, nos dois dias de audiências públicas, sexta 3 e segunda 6, a frente do STF virou uma pequena Bueno Aires, com grupos a favor da descriminalização replicando slogans, cartazes e até o figurino das manifestações portenhas."


"A ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação foi encaminhada ao STF pelo PSOL, em março do ano passado. Em tempo: descriminalizar é uma coisa, legalizar é outra. A primeira determina que o aborto deixe de ser crime passível de prisão (um a três anos para a mulher, três a dez para quem a auxilia). A segunda vai além e obriga o Estado a oferecer o procedimento na rede de saúde pública. 'Queremos que o Supremo, a quem cabe interpretar a Constituição, defina quando se dará o início da proteção da vida para fins de aplicação do Código Penal', resume uma das redatoras da ação, Luciana Boiteux, professora de direito criminal e criminologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A ação se apoia em dois argumentos principais. Primeiro: a Carta de 1988 contempla princípios que asseguram às mulheres liberdade, dignidade e voz ativa no planejamento familiar. Segundo: seu texto garante o direito à vida a adultos, adolescentes e crianças, mas não menciona a fase de gestação - brecha, por sinal, que deputados adversários do aborto tentam fechar, incluindo na Constituição um artigo que passe a garantir o direito à vida 'desde a concepção'. O prazo de doze semanas que a ação quer que o Supremo avalize baseia-se no consenso científico de que até essa fase da gestação o sistema nervoso central do feto não está formado."


"O aborto é permitido na maior parte do mundo desenvolvido e proibido na porção menos avançada, sobretudo onde predomina a Igreja Católica, terminantemente contra a prática. As questões religiosas e éticas que envolvem a interrupção da gravidez são profundas e relevantes, mas têm caráter intrinsecamente individual. Cada pessoa pode ser a favor ou contra o aborto e é livre tanto para censurar as mulheres que interrompem a gravidez quanto para criticar as que têm filhos sem condições de criá-los. Mas fechar um país ao aborto e qualificá-lo de crime é não só improdutivo, mas também cruel. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados no mundo 25 milhões de interrupções de gravidez em condições precárias a cada ano. Nos países onde a prática é crime morrem 220 mulheres para cada 100 000 mil abortos realizados. Naqueles em que é permitida, a mortalidade materna não passa de 1,7 para 100 000."


"No Brasil, a limitação do procedimento a situações de estupro, risco de vida da gestante e anencefalia do feto não impede que o aborto seja recorrente em todas as faixas de renda e escolaridade. 'Quem são as mulheres que abortam? Essa multidão pode ser descrita por números: uma por minuto, 56% católicas, 26% evangélicas. É a mulher comum brasileira', disse, em seu depoimento no STF, a antropóloga e ativista Débora Diniz, uma das responsáveis pelo mapeamento de perfil realizado pela Universidade de Brasília. No fim de julho, Débora precisou sair da cidade devido a ameaças que recebeu por sua posição a favor da descriminalização, o que só mostra a que níveis absurdos chegou a intolerância com quem pensa diferente."




"O levantamento da UnB revela que uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já realizou ao menos um aborto no Brasil - com toda a carga de medo, angústia, culpa e dor que o procedimento carrega. Metade delas apelou para o uso do misoprostol, medicamento recomendado pela OMS que aqui só pode ser vendido a clínicas e hospitais cadastrados, mas é facilmente encontrado no mercado paralelo. Mesmo nesse quadro favorável, há riscos quando as mulheres fazem uso errado ou tardio do remédio. Pior ainda: quando dá errado, muitos demoram a procurar um hospital e escodem que fizeram aborto, atrasando intervenções urgentes. 'Elas têm medo de ser denunciadas. Metade das notificações partem dos profissionais de saúde que as atendem', explica Flávia Nascimento, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
A metade que não toma o medicamento recorre a clínicas infectas, médicos inescrupulosos, porções abortivas e introdução de objetos variados no corpo. Uma análise da Defensoria do Rio dos depoimentos de 42 mulheres que respondem na Justiça por ter abortado mostra que vinte fizeram o procedimento sozinhas e apenas três interrompem a gravidez antes que ela completasse doze semanas. As 22 que procuraram clínicas clandestinas pagaram de 600 a 4 500 reais. Tiveram sorte, pois sobreviveram. Em 2014, Jandira dos Santos Cruz, de 27 anos, deixou as duas filhas em casa, em Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio, seguiu para submeter-se a um aborto clandestino e morreu. Seu corpo, carbonizado, só foi encontrado um mês depois."


"Para não cair no que classifica de 'açougue', e com medo de ser presa, a paulistana Rebeca da Silva Leite, de 31 anos, mãe de dois filhos e disposta a interromper uma terceira gravidez, tomou no ano passado a inédita iniciativa de pedir à Justiça autorização para abortar. A ideia partiu da antropóloga Débora, que também ajudou na elaboração da ação levada ao STF e propôs a Rebeca que ela fosse a 'face humana' do processo. Mesmo alertada de que seria alvo de críticas, Rebeca se assustou com a repercussão. Grupos contra a legalização do aborto conseguiram o número de seu telefone e ligavam para sua casa. Uma mulher foi bater à sua porta, pedindo que desistisse. O STF não aceitou conceder a liminar no âmbito da ação do PSOL. Pouco depois, Rebeca foi convidada a participar de um seminário na Colômbia, onde o aborto é permitido, e interrompeu a gravidez em uma clínica de lá. 'Foi um alívio', disse a VEJA. Abortos inseguros no Brasil levam à hospitalização de 250 000 mulheres por ano. Na última década, o SUS gastou 500 milhões de reais no tratamento de complicações."



"O aborto legal já chegou a 63 países, com a inclusão mais recente da católica Irlanda, onde a medida foi aprovada por 66% dos votos em um plebiscito, em maio. Caminhando na direção contrária, o Senado da Argentina rejeitou descriminalizar o aborto até quatorze semanas, depois de a Câmara ter aprovado por diferença de quatro votos. A vitória inicial impulsionou quase dois meses de manifestações diárias nas ruas, com participantes vestidas com um manto vermelho e touca branca - referência ao uniforme das raras mulheres férteis forçadas a reproduzir em uma sociedade dominada pelo conservadorismo religioso, tema da premiada série The Handmaid's Tale. 'As novas gerações, protagonistas dessa mobilização, representam a mudança e a certeza de que, se não sair agora, o projeto será lei em breve', afirma a deputada Victoria Donda antes da rejeição pelos senadores, que já era esperada."



"Uma das vozes mais vibrantes da campanha pró-aborto, Victoria, de 41 anos, nasceu na Escola Superior de Mecânica da Armada (Esma), em Buenos Aires, o principal centro de tortura da ditadura militar argentina. Seus pais até hoje são considerados desaparecidos. 'Se vamos falar de aborto clandestino, eu sei muito bem o que é clandestinidade. A clandestinidade entra no corpo. A pessoa se sente só', disse ela para uma matéria no jornal The New York Times. Embora seja sensível aos argumentos de quem é contra o aborto, a deputada reitera que criminalizá-lo é uma afronta inaceitável à liberdade das mulheres. 'Sinto pesar pelos embriões que não vão nascer, mas também sinto pesar quando vejo o rosto das mulheres que desfrutam todos os direitos e, mesmo assim, são impedidas de trocar a clandestinidade pela saúde pública', diz."



"O movimento pela descriminalização do aborto se intensificou nas últimas duas décadas na América Latina. A prática foi aprovada na Colômbia, na Cidade do México (apenas na capital, e não no país), no Uruguai, na Guiana, na Guiana Francesa e em Porto Rico. Antes disso, o aborto só era praticado legalmente em Cuba, como política nacional para garantir uma baixa taxa de mortalidade infantil. A mobilização agora está se disseminando na região. 'É uma ação protagonizada pelas mulheres. Elas estão quebrando o velho sistema ao declarar que são donas do seu corpo', reflete a antropóloga uruguaiana Susana Rostagnol. No Uruguai, onde a liberação se deu em 2012, as mortes em decorrência do procedimento despencaram: foram 8% dos óbitos maternos entre 2011 e 2015, contra 37% de 2001 a 2005."


"Nos Estados Unidos, a liberação também foi alcançada no Judiciário. Em 1973, a Suprema Corte deliberou sobre o caso Roe vs. Wade, junção do pseudônimo Jane Roe, inventado para proteger a identidade da mulher que foi aos tribunais pelo direito ao aborto em Dallas, no Texas, e do nome do promotor Henry Wade, contrário ao pedido. Os juízes americanos deram ganho de causa à mulher com base nas liberdades individuais garantidas pela 14ª emenda à Constituição. Posteriormente, Jane Roe foi identificada como Norma McCorvey, que veio a se converter em uma religião antiaborto e renegou sua ação. Se a virada de casaca de Norma não teve maior efeito, a virada ultraconservadora da Presidência de Donald Trump pode ter. A reabertura da questão foi tema de campanha e a Suprema Corte, na composição atual, não é refratária a reverter a decisão."



"A relatora do processo de descriminalização movido pelo PSOL, a ministra Rosa Weber, começará agora a redigir o seu voto, e a ação só deve ser levada ao plenário do STF no ano que vem, quando um novo governo terá assumido (veja a posição dos presidenciáveis acima). Com base em opiniões emitidas no passado, os grupos pró-descriminalizações estão otimistas: calculam que seis dos onze ministros sejam favoráveis à proposta. A própria Rosa já questionou, no debate de uma ação anterior, a constitucionalidade dos dois artigos do Código Penal na berlinda. A atual presidente, Cármen Lúcia, escreveu em Vida Digna: Direito, Ética e Ciência que as mulheres pobres têm muitos filhos por causa 'da ordem penal vigente'. É um sinal de que talvez essa ordem mude."


A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2595 - Ano 51 - nº 33. 15 de agosto de 2018. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.


SUGESTÃO

Após leitura, assista à reportagem do jornalismo da Band, que fala sobre a votação no plenário do STF da polêmica descriminalização do aborto. As imagens são do YouTube, e o idioma é o português.


Neste outro vídeo, é possível vê em animação os países que já decidiram pela legalização do aborto. As imagens são do YouTube, e o idioma é o português.


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