KLEBER LUCAS EM "QUE JESUS É ESSE?"


"O ídolo do pop evangélico fala das represálias - inclusive racistas - que sofreu ao se engajar na reconstrução de um centro de candomblé incendiado por intolerantes no Rio"


Por: Marcelo Marthe

"O cantor e pastor Kleber Lucas, 50 anos, é uma potência do gospel, gênero musical consumido pelo público evangélico. Com mais de 1 milhão de CDs e DVDs vendidos, ganhou onze discos de ouro e três de platina e criou hits como Aos Pés da Cruz. Mas desde o ano passado, quando se engajou na reconstrução de um terreiro de candomblé na Baixada Fluminense incendiado por intolerantes religiosos, Lucas virou um anátema para boa parte dos evangélicos. Viu escassear os convites para shows e as execuções nas rádios gospel. Oriundo de um clã sincrético - a mãe é evangélica e o pai foi adepto do candomblé -, ele abraçou com naturalidade a pregação pela tolerância. Nesta entrevista, fala sobre as reações que colheu em seu meio não só por isso, mas por fundar uma igreja 'diferentona' frequentada por celebridades na Barra da Tijuca e ser casado pela terceira vez - a atual mulher, Danielle Favatto, é ex do craque Romário. A seguir, sua entrevista."


Marcelo Marthe: "Até que ponto a rejeição pelo público evangélico, depois de três décadas de sucesso como cantor gospel, decorre de sua decisão de ajudar na reconstrução de um terreiro de candomblé?"
Kleber Lucas: "Sofro um boicote, sem dúvida. As reações vieram sob a forma de me fecharem portas, de cessarem todos os convites, de não quererem que eu cante ou pregue nas igrejas. Tem muita gente que pensa diferente, mas infelizmente minha pregação pela tolerância religiosa, como cantor e pastor, não agrada à maior parte do movimento evangélico".

Marcelo Marthe: "A reação negativa o surpreendeu?"
Kleber Lucas: "Não me decepcionei, porque já esperava exatamente isso. Sempre convivi nesse meio. Sei que há forte hostilidade entre os evangélicos contra as religiões de matriz africana."


Marcelo Marthe: "Por que o senhor se envolveu na reconstrução do terreiro?"
Kleber Lucas: "No ano passado, fui ao Complexo do Alemão para participar de um evento de solidariedade às vítimas da violência, e lá recebi o convite para fazer de uma mesa de diálogo e da entrega de uma doação levantada por uma igreja cristã para um centro de candomblé em Duque de Caxias que havia sido incendiado pelo pessoal intolerante. Eu topei, pois creio que a palavra e o amor de Cristo valem para todos os seres humanos, sejam eles evangélicos, católicos ou adeptos de religiões africanas. Diante da injustiça que foi feito naquele centro religioso - um lugar que não servia apenas para a prática do candomblé, mas também para ajudar a comunidade -, é claro que eu só podia dizer sim. O problema é que estamos vivendo tempos de comunicação rápida e ódio fulminante na internet. No evento, eu cantei Maria Maria, do Milton Nascimento, e alguém me filmou e postou nas redes sociais. O mundo desabou sobre mim".


Marcelo Marthe: "O que aconteceu?"
Kleber Lucas: "Fui atacado nas redes sociais e em sermões nas igrejas, por estar num lugar de culto africano e cantar uma música profana. Recebi ligações com ameaças. Em muitos grupos no WhatsApp circulam mensagenzinhas de ódio: 'Não convide Kleber Lucas para cantar na sua cidade. Ele não representa os evangélicos'. 'Eu não represento mesmo quem é intolerante, seja evangélico ou não'."

Marcelo Marthe: "Como carreira musical foi afetada?"
Kleber Lucas: "Diretamente. Hoje faço poucos shows e ninguém mais me convida para pregar ou cantar em grandes eventos. Já cantei na marcha para Jesus em São Paulo (para evangélica), mas desde o ano passado, curiosamente, não me convidaram mais. Mas respeito. Não estou aqui para condenar nenhum tipo de movimento. Não quero engrossar essa corrente de ódio que está nas redes sociais e é muito forte dentro do ambiente religioso."


Marcelo Marthe: "O senhor se sente frustrado?"
Kleber Lucas: "Para falar a verdade, estou em paz. Sou alguém que saiu do Grammy Latino e vendeu milhões de CDs e hoje é benquisto só por um grupo pequeno de pessoas. Mas prezo muito aqueles que me recebem com carinho. Estou descobrindo gente maravilhosa - inclusive muitos pastores - que comunga de muita visão e dialoga com católicos, umbandistas, judeus. Somos minoria num mundo que trocou a bandeira da conciliação pela luta feroz entre tribos. Temos um presidente dos Estados Unidos que representa um segmento cristão e tem ideias assustadoras. A mensagem dele não tem nada a ver com a de Jesus".

Marcelo Marthe: "Sua gravadora, a MK Music, especializada em música gospel, também o boicotou?"
Kleber Lucas: "Não, pelo contrário. Ela sempre me respeitou, ainda que não concorde com meu posicionamento. Mas há um silêncio entre nós. E eu entendo o que esse silêncio representa".

Marcelo Marthe: "O que é?"
Kleber Lucas: "A grande maioria dos músicos me ama, vem à minha casa e à igreja, manda mensagens e liga para mim. Mas eles não podem mais postar foto comigo no Instagram, nem aparecer do meu lado, nada. Em público, alguns deles viram a cara".

Marcelo Marthe: "Inclusive as grandes estrelas do gospel?"
Kleber Lucas: "Inclusive grandes estrelas. Sem citar nomes".

Marcelo Marthe: "A que o senhor atribui a isso?"
Kleber Lucas: "Medo".

Marcelo Marthe: "Não é injusto identificar a maioria dos evangélicos com a intolerância?"
Kleber Lucas: "Quem prega o ódio é a minoria. Muitos evangélicos têm a tolerância dentro de si, mas não têm coragem de assumir publicamente. Porque botar a cara para fora tem implicações, inclusive financeiras: o pastor que falar a favor do diálogo com outras religiões ocorrerá o risco de perder o emprego na igreja. Recebo muitas mensagens que dizem: 'Olhe, essa sua causa se harmoniza com o Evangelho. Mas você sabe por que eu não posso me posicionar'. Recebo também muitos e-mails e mensagens de apoio de pastores que preferem não se expor. São pessoas que eu amo, e entendo seus limites. Elas estão ainda oprimidas, não querem ser a voz que vai confrontar isso".


Marcelo Marthe: "Como se chegou a ponto de haver ataque a um terreiro de candomblé no Brasil?"
Kleber Lucas: "A história da nação chamada Brasil é uma história desrespeitosa com relação às diferenças religiosas. Essa hostilidade sempre existiu, não foi criada pelos evangélicos. A desconfiança com as crenças de matriz africana é uma realidade desde que os negros pisaram aqui, há quase 500 anos. Hoje, isso voltou com tudo. A gente não está mais preocupado em ouvir o outro - o caminhoneiro, por exemplo. Você quer dizer que ele é um pilantra, que é de direita, que é de esquerda. O pessoal quer uma chance para o embate. Isso não tem nada a ver com Jesus de Nazaré, que, diante da opressão do Império Romano, da hostilidade de Galileia dos pagãos, falou sobre amar o próximo como a si mesmo".

Marcelo Marthe: "O senhor já declarou que a teologia no Brasil é racista. Não é exagero?"
Kleber Lucas: "Desde que os jesuítas chegaram por aqui, a religião no Brasil sempre endossou o discurso da hierarquia racial. O Cristo que trouxeram para o país é um Cristo branco, europeu. Mas nós esquecemos que o cristianismo vem de um ponto de intersecção entre Europa e África, o Oriente Médio. Não podemos ignorar também que muitos missionários evangélicos que vieram para cá, no século XIX, eram americanos do sul dos Estados Unidos, de uma cultura escravocrata. Falar isso é chocante, mas é uma realidade que eu, como pastor negro, conheço bem. Há algumas pessoas conscientes, sim. Mas é inegável que existe racismo entre os evangélicos. Eu era um cantor gospel festejado. Depois de ir ao centro de candomblé, virei um negro safado, macumbeiro, vagabundo. Que Jesus é esse que os intolerantes invocam? Vivemos um tempo de ódio profundo".


Marcelo Marthe: "Sua amizade com um padre católico, Fábio de Mello, também foi alvo de críticas. Como se aproximou dele?"
Kleber Lucas: "Nós nos unimos na campanha pela reconstrução do centro de candomblé, e também o recebi para um culto em minha igreja. Eu já tinha sido criticado por cantar num culto Epitáfio, uma música linda dos Titãs. As pessoas não se dão nem ao direito de ouvir uma poesia e já começam a questionar: como pode um artista evangélico cantar músicas profanas e ainda se apresentar com um padre? É assustador ouvir isso num ambiente religioso. A música não precisa ser religiosa para nos elevar. Algumas canções de Gilberto Gil são pura teologia popular e conseguem nos aproximar do divino. É lindo quando Gil canta que a vida é um altar onde a gente celebra tudo o que Deus consentir. Mas isso assusta a maioria dos evangélicos. No episódio do padre Fábio, muito ódio foi destilado. 'Isso não é igreja', acusam. Fui parar no hospital com a pressão altíssima".


Marcelo Marthe: "Sua igreja, a Soul, anuncia que está de braços abertos para pessoas que se vejam como 'sal fora do saleiro'. O que isso significa?"
Kleber Lucas: "É assumir que ninguém é perfeito e, mesmo assim, pode amar e ser amado por Cristo. Veja a minha situação pessoal. Sou um pastor que está no terceiro casamento. É uma coisa imprópria, que gera muita interdição no mundo evangélico. Fazem comentários ácidos. 'O que esperar de um cara que se diz pastor e está no terceiro casamento?' Esse é o meu pecado, talvez. Mas é a minha história, e não posso ser visto como um pária por isso. Aliás, assim como acontece em casa, as famílias hoje muitas vezes são colchas de retalhos bem costuradas, como pais, mães, seus respectivos ex, filhos e enteados. Quem quiser ignorar esse dado da realidade ou mostrar preconceito contra esse fato poderá se enterrar num buraco".


Marcelo Marthe: "O que significa o slogan 'Soul Diferentona', propagado pelo senhor e por sua mulher, Danielle Favotto?"
Kleber Lucas: "Igreja diferentona é no sentido de descomplicada, de não se fechar dentro do estereótipo estético do 'crente'. A gente é evangélico, mas igual a todo mundo. Somos pastores que fazemos crossfit, o que também assusta. E a Dani é muito diferentona mesmo, com a militância dela pelo fitness gospel. Lá em casa é muita malhação e comida saudável. A gente gosta de interagir com as pessoas, ir a festas e eventos sociais sem preconceito. Quando eu cantei em uma novela da Globo (Amor à Vida, em 2014), fui acusado até de zombar da Santa Ceia. Mas considero que estava cumprindo minha missão de celebrar a fé com o maior número de pessoas. Os encontros da igreja não acontecem só no templo. Podemos passar a tarde de sábado pregando na praia, na Barra da Tijuca. As pessoas vão passando de sunga e biquíni e dizendo: 'Olhe o pastor, vamos ouvir sua palavra'. 

Marcelo Marthe: "De Susana Vieira a Bruna Marquezine, muitos famosos já foram a sua igreja. As celebridades também são filhas de Deus?"
Kleber Lucas: "Todos os seres humanos são. Não queremos saber o CEP ou o CPF de quem vem ao culto. Todos são tratados da mesma forma, do porteiro ao milionário. Acabamos convivendo com pessoas que são famosas, que têm visibilidade social, sim. Mas aquilo de que fazemos questão é nos relacionarmos bem com as pessoas, ponto."


CONHECIMENTO CEREBRAL ENTREVISTA foi retirado da revista VEJA - Edição 2593 - Ano 51 - nº 31. 01 de agosto de 2018. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.


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