CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA MEIO AMBIENTE!
"O ÁRTICO DERRETE"
"O degelo no extremo norte da Terra representa ganhos substanciais para setores econômicos como indústrias de navegação e de combustíveis fósseis - e ameaça a sobrevivência de espécies como ursos-polares"
Por: Eduardo Araia
"O nome Eduard Toll entrou em janeiro para a história da navegação mundial. Esse navio-tanque que transporta gás natural liquefeito (GNL) foi a primeira embarcação comercial a usar no inverno a Rota Marítima do Norte, que custeia o litoral ártico russo. De propriedade da Teekay - uma das maiores empresas de navegação do mundo, especializada em petróleo e gás -, o Eduard Toll saiu em dezembro de 2017 da Coreia do Sul para receber uma carga no terminal de Sabetta, na Península de Yamal (Sibéria), cortando gelo com 1,8 metro de espessura sem ajuda de navios específicos para isso. O GNL foi entregue em fevereiro em Montoir, na França.
O feito do Eduard Toll deverá se tornar cada vez mais rotineiro - a própria Teekay está preparando seis novos navios para servir na mesma rota. E sinaliza um fenômeno irreversível: o gelo marinho do Ártico já não é um obstáculo intransponível no inverno em tempos de aquecimento global. Ele está gradualmente diminuindo e recuando, com flutuação sazonal, à medida que as temperaturas globais sobem, impulsionadas pela ação humana.
Todo o planeta sente os reflexos desse aquecimento - no século passado, a temperatura média subiu cerca de 1ºC. Mas o Ártico está-se aquecendo a uma taxa praticamente duas vezes maior que a do restante do mundo. Os novembros na cidade de Utqiagvik (ex-Barrow), no Alasca, estão agora 5,5ºC mais quentes do que em 1979. No inverno ártico de 2017, o mais calorento já observado, alguns locais registraram temperaturas 20ºC acima da média."
"EFEITO AMPLIADO"
"O que chamamos de Ártico é, em sua maior parte, um oceano de pouco mais de 14 milhões de quilômetros quadrados, em geral coberto por gelo. Enquanto o oceano e atmosfera se aquecem, o gelo marítimo ártico encolhe - cerca de 13% por década desde 1979, segundo a Nasa, a agência espacial americana. O albebo - a superfície branca e brilhante de gelo - está dando lugar ao oceano escuro, o que significa que a luz solar está sendo absorvida, e não refletida, e isso amplifica o efeito do aquecimento."
"Segundo um relatório divulgado em 2017 por cientistas do governo dos EUA, essas 'mudanças rápidas e dramáticas' estão introduzindo um 'novo anormal' no Ártico. As tempestades estão erodindo as costas livres de gelo, os incêndios de verão estão mais intensos. Enquanto isso, animais lutam cada vez mais para encontrar comida."
"As condições de navegação polar ainda são difíceis, mas a rota pelo norte da Sibéria tem apelo econômico, por ser mais curta do que as opções via Canal de Suez para muitas transações entre Europa e Ásia. O presidente russo, Vladimir Putin (que cuida pessoalmente de um plano de exploração econômica do Ártico), espera que a Rota Marítima do Norte movimente 80 milhões de toneladas até 2024, oito vezes mais do que no ano passado. 'Minha sensação é que em 20 anos, se tanto, veremos muito mais comércio transitado por essa rota', afirma Joseph Francois, professor de economia internacional da Universidade de Berna (Suíça). E outra possibilidade começa a se abrir a oeste: o verão de 2017 foi o primeiro em que a Passagem Noroeste, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico, ficou totalmente livre de gelo. Segundo previsões científicas, o Ártico será plenamente navegável entre 2030 e 2040."
"O degelo é particularmente festejado por petroleiras e mineradoras. Reservas de carvão, diamantes, urânio, fosfato, níquel, platina e outros minerais de valor jazem sob as águas geladas do oceano e em terras ainda inexploradas dos países que o margeiam. Além disso, segundo estimativas americanas, as reservas de petróleo e gás na região representam cerca de 22% do total terrestre. 'O Ártico está certamente entre as últimas fronteiras no que diz respeito a recursos minerais não descobertos, além das profundezas dos oceanos', diz Morten Smelror, diretor do Serviço Geológico da Noruega."
"PREÇO EM CONTA"
"A argumentação ambientalista contrária à exploração dessas matérias-primas em um ecossistema frágil não tem se sustentado nos tribunais. A Noruega, grande produtora de petróleo europeia, venceu nos últimos meses várias batalhas jurídicas contra organizações conservadoras. O governo local pretende pôr em operação um de seus novos campos, dentro do Círculo Ártico, já em 2020, a um custo por barril - US$ 30 - desanimador para quem alega que a exploração ártica significa extrair um produto caro a um enorme custo ambiental.
Grande defensor dos combustíveis fósseis, o presidente americano, Donald Trump, autorizou em abril a abertura de um refúgio natural de vida selvagem no Alasca, protegido há décadas, para a prospecção de petróleo e gás. Por seu lado, a Gazprom, gigante petroleira russa, trabalha sem oposição na região ártica desde 2013 - de seu primeiro campo ali, Prirazlomnoye, já foram extraídos mais de 10 milhões de barris de petróleo.
Enquanto a indústria extrativa mineral e os setores de navegação, pesca e turismo (além das atividades de infraestrutura decorrentes deles) calculam quanto arrecadarão com o degelo ártico, outros personagens já sentem na pele os prejuízos decorrentes das mudanças. O principal perdedor é a fauna local, simbolizada sobretudo pelo urso-polar, cuja vida está intimamente ligada ao cada vez menos presente gelo marítimo.
Um estudo americano publicado em fevereiro na revista 'Science' reforça a pressão sobre os ursos-polares, ao revelar que eles precisam comer 60% mais do que se pensava antes. Segundo os pesquisadores, o metabolismo desses animais exige uma queima de mais 12 mil calorias por dia. A forma tradicional pela qual eles solucionam essa necessidade é caçando focas - uma atividade feita basicamente sobre o gelo marítimo. 'Nosso estudo revela a total dependência dos ursos-polares em relação às focas', afirma Anthony Pagano, biólogo de vida selvagem do Serviço Geológico dos EUA e líder dos pesquisadores. Para piorar a situação, algumas espécies de focas também dependem do gelo marítimo, onde dão à luz, alimentam os filhotes e descansam. Sem essas plataformas, sua sobrevivência fica cada vez mais complicada."
"VOOS PROLONGADOS"
"Outros ingredientes da fauna ártica em apuros são as aves marinhas. Uma pesquisa canadense divulgada em 2017 na revista 'Polar Biology' revelou que a população de gaivotas-marfim caiu 80% nos últimos 30 anos. Esses pássaros, se abrigam no litoral e voam até o gelo marinho, onde usam fendas para pescar. 'Eles podem desaparecer', lamenta o biólogo Olivier Gilg, da Universidade de Burgundy."
"Um estudo publicado em julho na revista 'PNAS' registrou o impacto da navegação nas águas árticas em mamíferos da região, em especial as baleias. A equipe liderada pela ecologista marinha Donna Hauser, da Universidade do Alasca em Fairbanks, descobriu que mais da metade dessas populações está mais vulnerável com o trânsito de embarcações, e espécies de baleias como narvais, belugas e baleias-da-groenlândia aparecem particularmente ameaçadas.
Baleias e golfinhos usam sons para comunicar-se e localizar presas sob a água, e a perfuração causada pelos navios pode dificultar seriamente suas atividades habituais. Além disso, colidir contra embarcações é uma das principais causas de morte e ferimentos traumáticos entre espécies mais lentas, como as baleias-da-groenlândia.
'Os narvais têm todos os traços que os tornam vulneráveis aos distúrbios causados por embarcações', afirma Kristin Laidre, cientista polar da Universidade de Washington e coautora do estudo. 'Eles aderem a áreas realmente específicas, são inflexíveis em relação a onde passam o verão, vivem em apenas cerca de quarto do Ártico e estão concentrados no meio das rotas de navegação. Eles também confiam no som e são notoriamente nervosos e sensíveis a qualquer tipo de perturbação'."
"FÔLEGO PARA A PESCA"
"Percebem-se também mudanças na presença de plâncton e algas e nos padrões migratórios de peixes no Ártico, como bacalhau, halibute e hadoque, mas a maior presença a estes é mesmo a pesca. Embora um acordo tenha sido fechado em dezembro pela União Europeia e alguns dos mais importantes países do setor no mundo para banir a atividade da região pelos próximos 16 anos (veja quadro acima), a ação da indústria pesqueira será inevitável. A Rússia, por exemplo, dona do maior litoral entre os cinco países com presença no Ártico (os outros são Estados Unidos, Canadá, Noruega e Dinamarca), já tem estudos adiantados sobre o potencial de pesca da região."
"Todas essas mudanças interferem, por sua vez, na vida dos cerca de 400 mil integrantes das populações indígenas do Ártico. Sua dieta está intimamente ligada aos animais disponíveis para caça, e o declínio destes ameaça a sobrevivência dos primeiros. 'O aquecimento global amplia desafios sociais, políticos, econômicos, legais, institucionais já existentes', ressaltam os pesquisadores europeus Anne-Sophie Crepin, Michael Karcher e Jean-Claude Gascard em um estudo sobre o tema publicado em 2017 na revista 'Ambio'.
Cientistas esperam que seus estudos mobilizem os formuladores de políticas a criar regras que minimizem os problemas causados pela expansão da presença humana na região ártica, mas essa expectativa não tem sido suficientemente acompanhada por ações em defesa das partes menos favorecidas. Por enquanto, ao que tudo indica, a estas caberá o esforço maior de adaptar-se - ou desaparecer."
A matéria acima foi retirada da revista PLANETA - Ano 47 - Edição 543, págs. 32, 33, 34, 35, 36 e 37. Agosto/Setembro de 2018. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista PLANETA e à Editora Três.
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