CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER!


"É PRECISO FALAR SOBRE ESTUPRO"
"Nos últimos anos, cada vez mais movimentos feministas e produções culturais, além da internet, têm rompido a bolha de silêncio em torno desse crime"


Por: Jennifer Ann Thomas

"NA SEGUNDA-FEIRA 13, a Justiça da Suécia decidiu reabrir as investigações sobre as acusações de estupro contra Julian Assange, fundador do portal WikiLeaks. O processo fora arquivado em 2017, mas a detenção de Assange, depois de sua retirada da embaixada equatoriana em Londres, no início em abril, possibilitou a retomada do caso. Uma suposta vítima alega ter sido estuprada pelo jornalista durante uma viagem que ele fez a Estocolmo. Pouco antes da decisão do Ministério Público sueco, cerca de 200 pessoas fizeram, na cidade italiana de Ancona, uma série de protestos depois que veio à tona o motivo pelo qual a corte local decidiu arquivar um caso de estupro ocorrido em 2015: as três juízas - sim, todas mulheres! - consideram a vítima, uma peruana de 22 anos, "masculina demais" para ser tida como atraente a ponto de provocar um estupro."




"Na Europa têm sido frequentes manifestações de mulheres pedindo alterações nas leis que tratam do estupro com o objetivo de fazer com que o crime não seja mais definido pelo uso da força, e sim pela falta de consentimento da vítima no momento do ato. Em 2018, Suécia e Islândia, por exemplo, mudaram as respectivas legislações a respeito. Foi uma vitória, sem dúvida, mas o caminho que falta percorrer ainda é longo. Mesmo com a ascensão recente dos movimentos feministas que visam combater o estupro - como os populares MeToo, nos Estados Unidos, e Mexeu com Uma, Mexeu com Todas, no Brasil, ambos eclodidos dois anos atrás -, o cenário continua aterrador. Em território brasileiro - para ficarmos no que ocorre mais perto de nós -, 164 casos de estupros foram registrados por dia em 2017. Apenas no Rio de Janeiro, mais de 4 500 mulheres foram violentadas no ano passado. Estima-se que somente 10% dos crimes de estupro sejam notificados. O receio de ser julgada e  passar vergonha publicamente, além do medo de sofrer novos ataques, faz com que as vítimas se calem.
Assim, o avanço de maior envergadura na cruzada contra tal crime abjeto sob todos aspectos é o estouro cada vez mais ruidoso da bolha de silêncio em torno dele. Os exemplos se multiplicam - tanto no âmbito dos movimentos sociais como no da produção cultural. "Quando ocorre um abuso, cria -se um ambiente favorável ao criminoso, no qual a mulher finge que não está sendo violentada, as pessoas em volta fingem não ver e os homens que atacam fingem que nada fizeram de errado", analisa a juíza Tatiane Moreira Lima. Atuando na trincheira das ações sociais, ela é responsável por uma iniciativa, lançada em 2017, que implantou campanhas de conscientização contra o assédio em transportes públicos na cidade de São Paulo. "Os ataques em ônibus são diretamente relacionados à cultura do estupro. A mulher é objetificada de tantas formas, desde como é retratada em comerciais até a maneira como é tratada na rua, que acaba por se tornar um alvo mais fácil", acrescenta Tatiane. "Depois que demos início à campanha, vítimas passaram a denunciar mais e testemunhas finalmente compreenderam que a omissão também é uma violência contra a sociedade", concluiu ela."



"Há uma década, essas histórias de estupro provavelmente não chegariam a público", disse a VEJA a economista, socióloga e escritora indiana Sohaila Abdulali, autora do livro Do que Estamos Falando Quando Falamos de Estupro, lançado neste mês pela Editora Vestígio (leia a entrevista abaixo). Também já frente cultural, duas produções recentes realizadas pela Netflix jogam luz sobre o problema. No documentário City of Joy, de 2016, conta-se a história do ginecologista congolês Denis Mukwege. Ele é responsável por um hospital no qual se realizam cirurgias de reparo de órgãos íntimos de mulheres, incluindo crianças, violentadas por guerrilheiros em áreas de conflito do Congo. Em doze anos de trabalho, atendeu 21 000 vítimas. Resultado: foi jurado de morte e atualmente vive protegido por forças da ONU. Seu empenho lhe rendeu em 2018 nada menos que o Prêmio Nobel da Paz. Já a série Crimes em Déli, deste ano, recria o caso do estupro coletivo e homicídio de uma estudante de 23 anos na Índia, o que motivou manifestações pelas ruas do país em dezembro de 2012.
Na internet, as redes sociais tornaram-se ferramentas fundamentais para amplificar o debate em torno de questões urgentes como a do estupro. Assim nasceu a hashtag MeToo (em tradução, "eu também"), que teve início a partir de acusações contra Harvey Weinstein, então poderoso produtor de Hollywood, e se estendeu a todas as mulheres que resolveram revelar na web casos de assédio. Entre 2017 e 2018, A hashtag foi usada 19 milhões de vezes no Twitter. Toda a ação levou à exposição dos estupradores. Apenas nos Estados Unidos, onde se revelaram outros crimes, 201 homens perderam cargos em posições de poder, como em Hollywood. No Brasil, um paralelo, nasceu o Mexeu com Uma, Mexeu com Todas, que ganhou corpo quando a figurinista Su Tonani, 28 anos, denunciou o assédio do ator José Mayer, da Rede Globo. Atrizes como Taís Araújo, Camila Pitanga e Cléo Pires aderiram  à iniciativa."



"Fazendo eco ao que dizem estudiosos do assunto, Sohaila Abdulali relaciona a denominada cultura do estupro" - segundo as Nações Unidas, "a sociedade que culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens" - à sociedade patriarcal. Um estudo publicado em 2014 pela ONU, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostrou como o Brasil está impregnado por aquela mentalidade. De acordo com o levantamento, 58% dos entrevistados no país concordaram que "se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros". Já 63% afirmaram que "casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família". E 82% disseram acreditar que "em briga de marido e mulher não se mete a colher". Para dar um basta à barbárie representada pelo estupro, é  preciso: sim, meter a colher - ou seja: abrir a boca e denunciar."


"AINDA UM TABU"


"A socióloga e economista indiana Sohaila Abdulali foi vítima de um estupro coletivo aos 17 anos. Quanto homens a renderam em Mumbai - e se lançaram à barbárie. Era 1980. A polícia, impregnada de um machismo, digamos assim, culturalmente atávico, a considerou culpada pela situação. Três anos mais tarde, Sohaila um artigo sobre o assunto para uma revista da Índia. O texto foi retomado em 2012, durante manifestações feministas que se espalharam pelo país - depois que uma estudante foi violentada por vários homens dentro de um ônibus -, e ela ganhou fama internacional, o que a levou a escrever o livro Do que Estamos Falando Quando Falamos de Estupro, best-seller lançado em 2018 e que chega às livrarias brasileiras neste mês. Sohaila, que mora nos EUA e já foi coordenadora do centro de crise de estupro de Boston, falou a VEJA.

Jennifer Ann Thomas (VEJA): "O título de seu livro sugere que estamos em um momento no qual se está falando publicamente sobre estupro. É esse o cenário?"
Sohaila Abdulali: "É importante não nos enganarmos. Parece que estamos debatendo o suficiente. Não estamos. Quando se contatam vítimas, nota-se que a maioria não tem com quem conversar e continua a expressar medo, silenciando-se. O assunto ainda é tabu. Quando estive na Austrália para lançar meu livro, leitoras pediam que eu o autografasse, só que em seguida escondiam o título para que ninguém soubesse o tema da obra que tinham comprado".

Jennifer Ann Thomas (VEJA): "Por que precisamos falar mais sobre esse assunto?"
Sohaila Abdulali: "Se não tratarmos dele abertamente, não reconheceremos o problema. Deixaremos de entender, por exemplo, que ainda criamos meninos que acham que podem desrespeitar as mulheres". 

Jennifer Ann Thomas (VEJA): "Como uma vítima, homem ou mulher, deve reagir?"
Sohaila Abdulali: "Quando uma pessoa passa por uma violência sexual, alguém tira dela o controle sobre sua própria vida. Só a vítima pode decidir como processar o crime. A culpa, no entanto, jamais deve cair sobre ela. É a sociedade patriarcal que torna aceitável relativar o estupro. Não é possível superar totalmente o ataque, mas sim atravessar o trauma e seguir em frente. No âmbito coletivo, é preciso falar a respeito do assunto para incentivar grupos feministas que mostram como as vítimas não estão sozinhas".

Jennifer Ann Thomas (VEJA): "Qual a ligação entre o patriarcado e a cultura do estupro?"
Sohaila Abdulali: "No caso do Brasil, uma das maiores instituições patriarcais é a Igreja Católica. Trata-se de uma instituição que não considera humanos como iguais. Só homens podem ser padres, por exemplo. Em geral, valoriza-se a virgindade das mulheres, porém não a dos homens. Eles podem curtir sexo, enquanto elas devem apenas tolerá-lo. É tudo isso que impulsiona o homem a forçar uma mulher, pois ele se vê como mais importante do que ela. Não pode ser assim".


A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2635 - Ano 52 - n° 21. 22 de maio de 2019. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.



 SUGESTÃO

Abaixo, vídeo que explica o que é a cultura do estupro, do canal da SUPERINTERESSANTE, no YouTube. O idioma é o português.


Neste outro vídeo, do programa jornalístico Profissão Repórter, da Rede Globo, mostra o estupro, crime brutal, principalmente aqui no Brasil. As imagens são do YouTube e o idioma é o português.


Já no vídeo abaixo, a escritora Sohaila Abdulali, apresenta seu livro "Do que Estamos Falando Quando Falamos de Estupro", publicado pela Editora Vestígio, que produz o pequeno filme. As imagens são do YouTube e o idioma é inglês (legendado em português).


E por fim, trailer da documentário City of Joy, da Netflix, legendado em português, que conta a história de milhares de mulheres vítimas de estupro e tortura no Congo. As imagens são do YouTube.


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