RICARDO PAES DE BARROS DIZ "A CRISE DA EDUCAÇÃO É MAIS GRAVE DO QUE A POBREZA"


Na edição desta semana, 10 de agosto,  os colunistas Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin da revista ÉPOCA, entrevistam o economista e um dos criadores do programa Bolsa Família do Governo Federal, Ricardo Paes Barros, que comenta que o Plano Nacional de Educação é pouco ambicioso, por isso diz que da mesma forma que "Os municípios se ajudaram para tornar o Bolsa Família eficiente. O mesmo pode ser feito em educação". A entrevista completa você confere a seguir. Os direitos autorais são reservados exclusivamente a revista ÉPOCA, e a divulgação prioriza apenas, compartilhar as informações, garantindo acesso ao conhecimento para público de forma geral. O Conhecimento Cerebral respeita qualquer tipo de opinião e por isso, não é a favor de qualquer tipo de plágio. Ainda incentivamos o apoio a qualquer veículo de comunicação, que trabalhe e priorize a elaboração de informações úteis e verdadeiras.


Por Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin

"Um dos maiores especialistas do mundo em pobreza e desigualdade abraçou outra causa. Um dos formulares dos programas de combate à pobreza, ainda nos tempos do governo Fernando Henrique, Ricardo Paes de Barros deixou o governo Dilma neste ano e agora se debruça sobre políticas públicas para a educação, como economista-chefe do Instituto Ayrton Senna, PB, como é chamado, é engenheiro  do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), tem mestrado em estatística, doutorado e pós-doutorado em economia pela Univerdade de Chicago - templo do pensamento liberal - e pela Universidade Yale, ambas nos Estados Unidos. Hoje usa suas habilidades com números e o conhecimento que adquiriu ao longo de 40 anos de estudos sobre a sociedade brasileira para avaliar as políticas de maior alcance, com menor custo, na educação brasileira. Na entrevista a seguir, fala sobe o Plano Nacional de Educação, o impacto da desigualdade no aprendizado e sobre quanto a ideologia atrapalha o país."

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "O problema da educação é falta de dinheiro ou de gestão?"
Ricardo Paes Barros: "A meta é investir 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação até 2024. Nenhum outro país coloca tanto dinheiro na área. Mas o Brasil tem a educação típica de um país que tem metade da renda per capita brasileira; está 25 anos atrás do Chile e tem apenas metade dos jovens cursando o ensino médio na idade certa. São problemas graves. Então, se pedirem 10% do PIB para mexer na educação, acho que a sociedade brasileira deve dar. Mas deve dar sob a condição de garantir que a situação mudará, com um plano sério, bem explicado, com metas".

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "Esse seria o objetivo do Plano Nacional de Educação (PNE), que passou a vigorar neste ano. Qual sua opinião sobre ele?"
Ricardo Paes Barros: "As metas do PNE são muito pouco ambiciosas para quem quer realmente dar um salto na área. Elas não botam o Brasil no mapa do mundo da educação mesmo que consigamos cumprir todas. Faltam no PNE evidências sobre a eficácia das ações que mudarão para melhor o cenário do país. O MEC tem de dizer: 'Pegaremos esse dinheiro, faremos isso com ele e entregaremos este resultado. E se, no meio do caminho, não chegarmos lá, acionaremos uma outra coisa, que funcionará assim, custará tanto e produzirá tal efeito'."

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "No ponto em que o Brasil está hoje, cuidar da educação é mais importante que cuidar da pobreza?"
Ricardo Paes Barros: "Em 2000, a gente tinha 15% da população extremamente pobre e 12% analfabetos. Todo mundo acreditava que reduziríamos os analfabetos rapidamente porque o problema era focalizado e todos sabiam como fazer. Acreditavam que seria complexo reduzir a pobreza. No fim, a gente pegou aqueles 15% de pobres e rapidamente os levamos a 3%. E os analfabetismo ainda está em 9%. Hoje nossa revelada incompetência em melhorar em educação torna o problema mais desafiante e mais importante. Já temos uma política social supercapaz de atacar a miséria, mas os problemas da educação atingem muito mais gente que a pobreza."


Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "O que o senhor faria se estivesse no Ministério da Educação?"
Ricardo Paes Barros: "Cuidaria da difusão de melhores práticas. Num mesmo bairro temos escolas com nota 6 do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que é uma boa nota, e outras com Ideb 3, que é péssima. Isso não faz sentido. Se uma empresa inventar uma coisa bacana, o que a concorrência faria? Copiará. Por que a escola de Ideb 3 não copia a vizinha de Ideb 6? A questão é que criamos um sistema de educação que não é público, é estatal, e não tem muita dinâmica. O sucesso do Bolsa Família tem muito a ver com isso. No fundo, quem faz todo o trabalho do Bolsa Família ser um negócio focalizado é o município, porque quem escolhe quem será cadastrado é ele. Vários municípios copiam as experiências dos outros, e o Bolsa Família funciona bem em todo o país."

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "Essas boas práticas em educação não se disseminam por causa das desigualdades regionais?"
Ricardo Paes Barros: "Acho que não é esse o problema. O desempenho agregado de Pernambuco, Goiás e Rio de Janeiro em educação, na última década, é muito melhor que do resto do país. São Estados completamente diferentes. Agora, me diga por que o Espírito Santo não é igual ao Rio de Janeiro? Se Goiás fez, por que Tocantins e Mato Grosso não fizeram? Por que os municípios vizinhos a Sobral, no Ceará (outro caso de sucesso em educação), não vão lá entender o que eles fizeram para ter melhores notas do Estado no ensino público?"

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "E quanto a condição social influencia nessas disparidades na educação?"
Ricardo Paes Barros: "Muito mais do que deveria. Essa é uma das coisas que a gente deveria cobrar do governo. Esse é um ponto que está muito pouco contemplado no Plano Nacional da Educação. É absurdo que o aprendizado  de uma criança esteja condicionado ao lugar em que ela vive, ao fato de ela ser pobre ou rica, branca ou negra. O sistema educacional brasileiro permite que essas características tenham um impacto gigantesco no aprendizado do aluno. Isso é uma fonte da desigualdade de oportunidade absurda, que alimentará uma desigualdade ainda maior no futuro."

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "O que pode ser feito para resolver esse problema?"
Ricardo Paes Barros: "Se for bem planejada e bem implementada, a educação de tempo integral pode reduzir essa desigualdade. Ela pode dar ao aluno mais pobre aquilo que uma família em melhores condições oferece para uma criança e que tem tanto impacto positivo no aprendizado. Se numa família mais rica a criança tem acesso a um lugar iluminado e tranquilo para estudar, é isso que a escola tem de ter. A escola tem de desenhar mecanismos para tornar a educação mais independente do ambiente familiar. Tem de dizer para o pai: eu só preciso que o senhor faça a criança dormir cedo, faça ela se alimentar bem e seja carinhoso e encorajador. Não adianta pedir para o pai estudar com ele, para fazer pesquisas em livros a que ele não tem acesso. É preciso cuidar também da autoeficácia. O aluno bom é aquele que acredita que é capaz de aprender. O aluno confiante que tem um professor que acredita nele vai aprender muito mais."

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "O senhor é um entusiasta da ideia de que os esforços de educação devem ser concentrados nos primeiros anos de vida da criança. A principal meta do governo para a primeira infância é a criação de milhares de creches. É o caminho certo?"
Ricardo Paes Barros: "Essa é uma questão importante e muito complexa. A creche não é a solução para todas as crianças. Mães e pais, em suas casas, com suporte do Estado, com atendimento médico, podem promover o desenvolvimento fantástico da criança. Um exemplo é o Primeira Infância Melhor, do Rio Grande do Sul. É um programa de visitação domiciliar, de um profissional que vai observar a criança e dar orientação para a família de como cuidar dela. O plano de governo diz que, daqui a dez anos, teremos 50% das crianças nas creches. Mas o que precisamos é de um plano que cuide de 100% das crianças aqui e agora. Precisamos de um programa em que os agentes de saúde olhem pelo desenvolvimento das crianças e orientem as famílias. Ninguém no mundo cuidou da primeira infância colocando todas as crianças em creches de tempo integral. A creche é uma resposta para as crianças pequenas de mães pobres que trabalham. Para esse público, é uma opção eficaz. A creche aumenta mais a renda da família que o Bolsa Família. E faz isso de forma autônoma. Agora existe um problema com as creches no Brasil que chega  a ser maluquice: a maior parte das creches públicas é usada por mães que não trabalham. Existe hoje espaço nas creches brasileiras para abrigar a vasta maioria das mães pobres que trabalham. Mas não se dá prioridade a elas. O Ministério Público diz que o direito à creche é universal. Ocorre que quem tem tempo para pegar a fila da creche, quem vai lá no Ministério Público reclamar que quer creche, é a mãe que não trabalha. A política de creches deveria ser focalizada em quem precisa."



Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "Na criação do Bolsa Família, houve resistência de setores do governo Lula ao programa por se tratar de uma política focalizada, considerada neoliberal por eles. Ainda há preconceito contra as políticas de focalização?"
Ricardo Paes Barros: "Esse debate sobre a focalização foi superado. O que continua a existir é uma coisa discriminatória contra o setor privado. A educação claramente discrimina a universidade privada diante da pública, como se, por definição, algo estatal fosse melhor do que o privado. O programa nacional de alfabetização, por exemplo, tem de ser com as universidades públicas, e não com as privadas. Por quê? É pura discriminação - e ela tem de ser contestada. Há a ideia, de que privatizar parte da educação é mercantilizar o setor. Esse é o grande nó dos serviços públicos do Brasil. Na educação essa mentalidade é brutal e representa um grande problema. Não se pode  usar o Fundep (fundo de financiamento para a educação básica) para contratar uma rede de escolas de educação média para prover os serviços de um Estado. Um Estado poderia gastar menos contratando uma rede de ensino particular. Ele não se preocuparia com infraestrutura, nem com o quadro de docentes. O foco do Estado seria o controle da qualidade de ensino. Isso economizaria dinheiro e dor de cabeça. Imagina isso no Estado de São Paulo, que tem mais de 200 mil professores. As Organizações Sociais (OS) deram certo na saúde. Mas não se pode usar OS na educação. Não podemos testar o modelo de charters schools no Brasil, que são escolas privadas pagas em parte pelo governo e gratuitas para a população. Na Colômbia estão fazendo isso. A Suécia está se livrando de todas as escolas públicas. O país paga para a rede privada prover estudo. Para a família é gratuito - e só o que importa é a qualidade."


Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "Apesar da discriminação contra o setor privado, o Bolsa Família, formulado por liberais como o senhor, se transformou em uma vitrine dos governos do PT. O senhor se ressente por isso?"
Ricardo Paes Barros: "Não tenho problema nenhum com essa apropriação. Na verdade, é o contrário. Eu gostaria que eles tivessem se apropriado de outras ideias minhas. Foi um privilégio poder ter contribuído de alguma forma para a mudança social que ocorreu nos últimos anos. O presidente Lula fez coisas surpreendentes nesse sentido. Ele tem o mérito fantástico copiando ideia de tudo que é lugar, coisas dramaticamente diferentes, filosófica e ideologicamente contrárias. O ProUni, que concede bolsas de estudo em rede privada, e o ReUni, que é a expansão das universidades públicas, são contradições frontais. O Fernando Henrique escolheria um dos dois, nunca faria os dois. O Lula não tinha muita ideologia. Ele tinha um senso prático e uma vontade de melhorar a vida das pessoas. Se você me perguntar por que a desigualdade caiu no Brasil, direi que sei a razão e que isso é ótimo. Quando se sabe o motivo do crescimento econômico, isso significa que ele não será sustentável. Não tem nenhuma indústria que mantenha o crescimento de um país por um longo período. Quando é algo espalhado, misturado, que não dá para dizer que foi A,B ou C, é positivo, porque foi algo que aconteceu em todos os setores, por todo o país."

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "Quais das suas ideias o senhor se ressente por não terem sido implementas?"
Ricardo Paes Barros: "A principal foi a da junção de toda a política de transferência. Unir o seguro-desemprego com o Bolsa Família. Hoje, o beneficiário que conseguir um emprego formal perde o direito ao beneficio. Se ele perder o emprego, não o ganha de volta. A gente tem de construir um sistema que junte isso num programa que estimule o trabalho e a formalização. Da forma como está, ele desestimula o cidadão a ser formal, ou a voltar a trabalhar. Passei o último governo inteiro tentando emplacar esse plano, mas não fui ouvido. Desenvolvi outro programa para a população isolada na área de fronteira do país que garante a permanência nessa faixa. Temos 600 mil pessoas lá. Na próxima geração, não teremos ninguém. Isso será um problemão para o Brasil."

Flávia Yuri Oshima e Guilherme Evelin (ÉPOCA): "Tivemos vários ganhos na redução de desigualdade nos últimos 20 anos. Essas conquistas estão em risco com a crise em que o país está vivendo agora?"
Ricardo Paes Barros: "Os ganhos sociais são muito sólidos. Não acho que corremos muito risco. A crise que temos é inventada por nós mesmos. Não temos crise por causa de desastre natural, ou alguma doença, ou algum inimigo que causou alguma coisa. É um desarranjo institucional. Fomos muito desorganizados, gastamos mais do que tínhamos. Dado isso, essa crise teria tudo para ser de curta duração. Seria o caso de chamar todo mundo, organizar e proteger a renda dos mais pobres. Metade da população brasileira tem menos de 20% da renda brasileira. É fácil proteger 20% da renda brasileira. Porque a renda brasileira precisa cair 4%, basta os outros 80% perderem 5% que a renda dos mais pobres não precisa cair nada. Num país com uma política social poderosa como a do Brasil, dá para blindar os pobres. Para isso precisamos de um corte orçamentário cuidadoso. Agora, estamos caminhando para a direção errada. Fizemos cortes toscos, no abono-salarial e no seguro-desemprego, que poderiam ser alterados de outra forma. E transformamos uma crise que poderia ser de curta duração em algo de média duração. Falta coesão e uma liderança que junte todo mundo em torno de uma mesa para fazer um ajuste sério. Hoje é como se estivéssemos numa enchente desastrosa, com água até o joelho, e a oposição quer sentar numa mesa boiando na enchente para discutir quem é o culpado, em vez de correr para escoar a água."


A entrevista acima foi retirada da revista ÉPOCA, edição nº 896, págs. 58,59, 60 e 61.  10 de agosto de 2015. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente a revista ÉPOCA e a Editora Globo.


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