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A seguinte matéria foi escrita por Raquel Beer, publicada pela revista Veja, em 16 de agosto de 2015. Portanto, todos os direitos autorais pertencem exclusivamente à revista, e seus autores, e não devem ser copiados sem a divulgação de seus nomes.
 
"UM RIO, E NÃO UMA ÁRVORE"
"A descoberta, na África do Sul, de uma espécie do gênero humano pode mudar a forma como se tem compreendido a própria evolução do homem: em vez da ramificação de uma única raiz, um curso d'água dividido em braços que vão se reencontrar lá na frente"
 
 
"O homem foi o único entre os animais a ser denominado, merecidamente, homem, anthropos: estuda o que vê', escreveu o grego Platão. No entanto, não compreende quanto é parecido com os símios, cutucou o alemão J. W. Goethe. Parte da motivação dos cientistas que buscam ossos velhos está justamente em confirmar Platão e poder dizer a Goethe: 'Macaco é a vovozinha!'. Na semana passada, os cientistas tiveram um desses dias gloriosos em que a excepcionalidade do ser humano foi reafirmada.
Liderado por Lee Berger, da Universidade de Witwatersrand (África do Sul), um grupo de pesquisadores anunciou a descoberta de uma espécie do gênero humano, o Homo naledi. Com uma estranha combinação de traços modernos (mãos similares às nossas) e características de hominídeos primitivos (ombros semelhantes ais dos macacos), o Rising Star, nome artístico do Homo naledi, propõe uma charada nova para os estudiosos dos primórdios da espécie humana. Naledi significa estrela (star) no idioma dos povos que habitam atualmente a região da caverna de mesmo nome onde os ossos foram encontrados - a apenas 50 quilômetros de Johanesburgo.
A África do Sul ganhou o título de berço da humanidade em 1925, quando Raymond Dart apresentou ao mundo o bebê de Taung, um crânio de criança completamente do que seria depois descrito como Australopithecus africanus. Por meio século, essa reputação foi mantida. Mas a década de 70 foi devastadora para a imagem do país como abrigo de espécies extintas da família do homem moderno. Em 1975, em uma cavação no Deserto de Afar, na Etiópia, na região conhecida como Grande Vale do Rift (depressão de terreno que cobre uma das mais extensas falhas geológicas do planeta), o paleontólogo americano Donald Johanson encontrou Lucy, um esqueleto quase completo de uma nova espécie - o Australopthecus afarensis. No ano seguinte, a inglesa naturalizada queniana Mary Leakey identificou na Garganta de Olduvai, em Laetoli, na Tanzânia, uma impressionante série de pegadas frescas na lama, preservadas para a prosperidade por cinzas de uma erupção vulcânica. As Pegadas de Laetoli foram deixadas por seres que caminhavam eretos, identificados mais tarde como parentes diretos de Lucy. Toda a atenção se voltou, então, para o Grande Vale do Rift e a Garganta de Olduvai."
 

"Agora a dupla Homo naledi e Lee Berger atrai de novo os holofotes para a África do Sul. Carismático, Berger tornou-se um especialista em angariar fundos para suas pesquisas, mas faltava algo seminal. Coordenando uma equipe de sessenta cientistas - incluindo craques como o filho de Mary Leakey, o queniano Richard Leakey - , ele recolheu em um mês de escavações, em 2013, 1550 fragmentos fósseis de quinze indivíduos da espécie agora batizada de Homo naledi.
Os pesquisadores têm pela frente um problemaço: fazer a datação do que encontraram. Quando, afinal, teria vivido o Homo naledi? Para aferirem a idade de um fóssil, os cientistas geralmente analisam o solo em que ele foi encontrado. Se jazia entre camadas vulcânicas, um exame químico pode indicar, pela perda de material radioativo da poeira vulcânica, em que momento ele foi ali depositado. A técnica, porém, não é útil no caso de Rising Star, já que seus ossos estavam sob uma camada de sedimentos. Problema: a reunião de tantos ossos em um único lugar, sem indício de que eles tivessem sido levados para lá por predadores, lançou a suspeita de que aquela fosse uma área onde se deixavam os mortos. Acredita-se que rituais fúnebres sejam mais recentes do que o suposto período de vida do novo hominídeo."
 

"Resta, então, a possibilidade de tentar encaixar o Homo naledi na linha evolutiva, com base em suas características anatômicas. Os registros fósseis de que se tem notícia são extremamente falhos. Do momento atual para o passado, há Homo sapiens (homem moderno), seu antecessor Homo erectus e, então uma espécie chamada Homo habilis, da qual pouco se sabe - embora se possa dizer que seria a nascente da família Homo. Antes dela, existe um período de trevas de conhecimento, até que se chega ao Australopithecus. Esse intervalo misterioso dura cerca de 1 milhão de anos. O que encanta os cientistas agora é a possibilidade de o Homo naledi ser a peça que faltava para entendermos como houve a transição entre o Australopithecus e o Homo sapiens.
A metáfora mais utilizada para explicar a evolução da humanidade, como a de qualquer família, é uma árvore, segundo a qual a raiz seria o primeiro ancestral, e a partir dela surgiram ramificações (outras famílias e espécies). No entanto, como destaca Berger, outra figura parece mais apropriada. Que tal, em vez de árvore, pensarmos em um rio? A raiz daria lugar à nascente, e os ramos, aos vários cursos que o tal rio toma. Diferentemente da árvore, cujas ramificações crescem de forma separada, a água dos diversos cursos do rio evolutivo une-se num delta, desembocando no oceano e arrastando consigo os sedimentos de todos os lugares por onde passou."
 
 
A matéria acima foi retirada da revista VEJA, edição 2 443 - ano 48 - nº 37, págs. 80, 81 e 83. 16 de setembro de 2015. Todos os diretos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e a Editora Abril.
 
 
 



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