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"A TRAGÉDIA VIROU DRAMA"
"Um ano depois do acidente com o voo da Chapecoense na Colômbia, a extraordinária comoção que envolveu o mundo deu lugar à briga das famílias pela indenização"


Por: Alexandre Senechal e Jefferson Coppola [fotos]

"No rastilho da tragédia de 29 de novembro do ano passado, a comoção espalhou-se em ondas por todo mundo. A hashtag #ForçaChape e suas variantes passaram a ser reproduzidas nas redes sociais, em manchetes de jornais, em faixas, em camisas, em luminosos projetados em monumentos históricos. A queda do avião da companhia LaMia na região montanhosa perto do Aeroporto Internacional de Medellín, na Colômbia, matou 71 pessoas, entre jogadores e comissão técnica da Chapecoense, jornalistas e tripulação. Houve apenas seis sobreviventes. Em poucas horas, um clube pequeno da cidade catarinense de Chapecó, que voava para a sua primeira final internacional, a da Copa Sul-Americana, ganhou notoriedade que jamais conquistara, e do modo mais estúpido possível. Os cinco dias entre o acidente e o funeral coletivo pareciam reproduzir uma frase do colombiano Gabriel Garcia Márquez: 'O amor se torna maior e mais nobre na calamidade'. Na cerimônia realizada no mesmíssimo local e horário em que deveriam acontecer a partida contra o Atlético Nacional, o então ministro brasileiro das Relações Exteriores, José Serra, resumiu de modo genuíno e bonito o sentimento predominante: 'Naquele momento de tristeza para as famílias e para todos nós, as expressões de solidariedade que encontramos nos oferecem um grau de consolo imenso, uma luz na escuridão, quando estamos todos tentando compreender o incompreensível'."


"Exato um ano depois, quando todos ainda tentam compreender o incompreensível, a tragédia virou drama, e aquele amor que parecia não caber em si virou outra coisa. O choro se traduz em reclamação. A solidariedade agora é desconforto. O consolo deu lugar a uma nítida sensação de injustiça (leia os depoimentos ao longo desta reportagem). #ForçaChape é apenas uma fotografia na parede, um post no Facebook esmaecido pelo tempo. Até a terça-feira 21, a Chapecoense já havia sido acionada judicialmente em quinze processos trabalhistas movidos por parentes de jogadores e funcionários do clube. Outras sete ações cíveis foram abertas pelas famílias de jornalistas que estavam a bordo da aeronave. As indenizações podem superar a casa de 1 bilhão de reais, considerando o valor do salário das pessoas embarcadas, a expectativa de vida de cada um e os danos morais provocados pelo desastre. Esse montante em ressarcimentos equivaleria à inviabilização da Chapecoense, que inapelavelmente teria de fechar as portas. 'Faremos todo o possível para agilizar o andamento das ações', garante o atual presidente da Chapecoense, Plínio David De Nes Filho. 'Esperamos dar o que merecem por justiça'."


"A demora na conclusão dos processos incomoda os familiares e, embora permita que a Chapecoense respire momentaneamente, é ensaio geral para a inexorável conta que virá pela frente. Há complicadores que justificam as delongas. A investigação sobre o acidente envolve autoridades de três países: Bolívia (a sede da empresa LaMia e de onde partiu a aeronave), Brasil (por ser o país do clube catarinense, o contratante do voo) e Colômbia (o local da queda). Para o Brasil e a Colômbia, as conclusão são claras. O Ministério Público Federal brasileiro diz não haver 'qualquer evidência de que algum brasileiro possa ter dado causa ou tenha contribuído para o trágico acidente' e que a escolha da LaMia se deu apenas por uma questão de preço - o valor do fretamento era de 140 000 dólares, menos da metade do orçamento encaminhado por uma concorrente. Ou seja: exime o clube de culpa na esfera criminal. O Grupo de Investigações de Acidentes Aéreos (GRIAA) da Aeronáutica Civil da Colômbia, unidade administrativa responsável pelo tráfego aéreo naquele país, divulgou um informe preliminar sobre as causas do acidente - o relatório final segue sem previsão de divulgação - no qual o motivo provável para a queda da aeronave é 'consistente' com a falta de combustível."


"Na Bolívia, contudo, só há sombras. Apura-se ali, como foi autorizada a decolagem de uma aeronave cuja autonomia de voo era exatamente a mesma da distância até o aeroporto de destino, e, portanto, muito próxima do risco de pane seca. Além disso, para que um voo seja liberado pelas autoridades aeroportuárias da Bolívia, é necessária a apresentação de uma apólice de seguro válida que garanta sua operação. A seguradora que emitiu a apólice para a viagem da aeronave da LaMia, a boliviana Bisa Seguros y Reaseguros, recusa-se a desembolsar o valor do prêmio estipulado (25 milhões de dólares) sob a alegação de falta de pagamento da companhia aérea. E mais: a Bisa apresentou uma cláusula contratual, aceita por todas as partes, pela qual se excluiu a Colômbia da cobertura - haveria indenização apenas se o avião tivesse caído em território boliviano. Por precaução, antecipando evidentes problemas judiciais, a seguradora Bisa entrou em acordo com os familiares dos tripulantes bolivianos, em troca de compromisso de que não a acionarão legalmente. Aos brasileiros, a seguradora oferece o que chamou de 'fundo humanitário': a cifra de 200 000 dólares para cada família, o equivalente à metade do valor da apólice. A proposta foi recusada pelos brasileiros, que já anunciaram que entrarão com uma ação coletiva na Justiça na Bolívia."


"Tudo é desacerto, e, enquanto não brotam definições, as peças se movimentam tentando ampliar as compensações. Há um denominador comum: as viúvas de muitos jogadores se queixam de não ter recebido dos empregadores do marido tudo o que lhes cabia por direito. Rosangela Loureiro, mulher do meia Cleber Santana, conta que a Chapecoense pagava 50% de seu aluguel na cidade. Depois do acidente, ela pediu que o auxílio fosse mantido e recebeu uma resposta positiva do clube. Três meses depois, porém, Rosangela descobriu que o pagamento não estava sendo feito. 'Sorte que o dono do apartamento era amigo da família, caso contrário teria sido despejada', diz ela. As viúvas de outros membros da comissão técnica, contratados como pessoas jurídicas, e não por meio da CLT, com todos os direitos assegurados, alegam ter sido esquecidas, sem receber um centavo do clube como reparação - apenas o valor amealhado até agora com os amistosos, leilões, doações de empresas e pessoas físicas: 61 000 reais por família, divididos em três parcelas. É o caso de Fabienne Belle, viúva de Luiz Cesar Martins Cunha, o Cesinha, fisiologista da equipe à época do acidente. Outros parentes só tiveram seus pedidos atendidos depois de reivindicar diretamente ao atual presidente do clube. Embora defenda a postura da instituição, o presidente Nes Filho admite fragilidade no tratamento dedicado ao longo do último ano. 'Pode ter acontecido. Não por falta de vontade, mas sim de informação'. Para reparar a falta de assistência nos últimos meses, o clube estreitou, nas últimas semanas, o contato com os grupos que defendem os direitos de reparação: a Associação Brasileira das Vítimas do Acidente com a Chapecoense (Abravic) e a Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da Chapecoense (AFAV-C)."


"Os familiares, em busca de valores maiores, costumam lembrar uma consequência evidentemente involuntária das mortes: a expansão da 'marca' Chapecoense. De acordo com um estudo feito pela consultoria de marketing esportivo BDO, no último ano o valor de mercado do clube praticamente dobrou, sendo estimado hoje em 65 milhões de reais. Em 2017, a Chapecoense esteve em Barcelona para a disputa de um amistoso contra o time de Lionel Messi e companhia. Na Itália, enfrentou a Roma e encontrou-se com o papa Francisco em visita ao Vaticano. E ainda viajou ao Japão para a disputa de um torneio amistoso contra o campeão nacional do país asiático. O clube catarinense afirma que está reservando 80% do seu lucro líquido para o pagamento de indenizações, quando os valores forem decretados. Ainda no ano passado, 5,4 milhões dos 6,7 milhões de reais registrados como superávit foram separados pela Chapecoense como 'reserva de contingência'. A previsão é que esse valor suba em 8 milhões de reais neste ano, já que a expectativa de balanço financeiro para 2017 é de 10 milhões de reais no azul."



"Em terreno tão delicado, os passos são tímidos, consternados, sem lágrimas. A diretoria da Chapecoense decidiu não realizar nenhum tributo na semana de lembrança da tragédia. Os familiares não esperam - nem querem - que as homenagens se estendam. Há duas semanas, foi realizada em Chapecó uma cerimônia para as 68 famílias brasileiras (dos 64 mortos e dos quatro sobreviventes) impactam diretamente pela desgraça na Colômbia - a agenda foi propositalmente antecipada a pedido dos familiares, justamente para não coincidir com o aniversário do acidente. Na semana do sábado 11, o ministro do Esporte, Leonardo Picciani, esteve no interior catarinense para entregar a Cruz e a Medalha do Mérito Desportivo aos representantes de cada uma das vítimas, além de repetir a promessa de apoio total do governo brasileiro na apuração do caso. O dia seguiu com palestras e outras mesuras. A muitos dos presentes, cultos como esse já não preenchem o vazio. Disse a VEJA o parente de um dos mortos, que vive em Chapecó e preferiu não se identificar, com receio de provocar mal-estar: 'Esse tipo de evento, apesar de bonito e emocionante, é uma forma de limpar a barra do clube e da diretoria pela falta de ações consistentes desde a tragédia'. Há um duplo anseio, e só: velocidade e justiça, de modo a transformar o drama em normalidade - o cotidiano duro das coisas findas e, embora findas, permanentes."


A matéria foi retirada da revista VEJA - Edição 2558 - Ano 50 - nº 48, págs. 82, 83, 84, 85, 86 e 88. 29 de novembro de 2017. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril


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