CIÊNCIA


"PESQUISAS INDICAM CHANCE DE 'CORRIGIR' DESEQUILÍBRIO NO CÉREBRO DE AUTISTAS"
"Saúde. Estudos da farmacêutica Roche e da USP não prometem cura, mas revelam novas estratégias de tratamento associados às terapias comportamentais já indicadas; mais avançado, trabalho da indústria poderia melhorar habilidades de comunicação e motoras"


Por: Adriana Ferraz
        Fabiana Fambricoli

"Brincar com colegas ou passear em locais públicos com a família nem sempre são fontes de diversão para Teodoro, de 9 anos. Se algo não sai como esperado ou foge da rotina, a reação pode ser explosiva, com atitudes agressivas e berros. 'O que sinto no meu filho é uma constante angústia em coisas que ele não deveria se preocupar, como o convívio com outras crianças', conta a artista plástica Juliana Ali, de 41 anos.
A dificuldade de interação social, muitas vezes confundidas com birra ou timidez, é uma das principais características do autismo, transtorno que afeta Teo e outras milhares de crianças no País e que, atualmente, é alvo de dois estudos que buscam uma abordagem terapêutica inédita para o problema.
As novas linhas de pesquisa apontam para a possibilidade de que o cérebro do autista produza substâncias em desequilíbrio e que isso poderia ser corrigido com medicamentos. Nenhum dos estudos indica ou promete cura, mas revela novos caminhos de tratamento associados à terapias comportamentais já indicadas. Hoje não há remédios específicos para o Transtorno de Espectro Autista (TEA), apenas drogas para atenuar sintomas relacionados, como irritabilidade ou insônia.
Um desses estudos obteve em fevereiro autorização da agência de vigilância sanitária americana, a FDA, para ter seus testes avaliados pelo órgão de forma prioritária, dada a inovação do trabalho e o ineditismo da droga proposta. Desenvolvida pela farmacêutica Roche, a pesquisa identificou que a vasopressina, um dos hormônios associados ao medo, funciona de forma diferente nos autistas, prejudicando a interação social. 'A droga tem o objetivo de promover um reequilíbrio e, como consequência, mudar a performance na parte do cérebro responsável pelas emoções, onde o hormônio atua', diz o diretor médico da empresa no País, Lenio Alvarenga.
Pessoas diagnosticadas com autismo têm quadros muito diferentes, pois o transtorno tem um espectro amplo. Há desde casos leves, nos quais o paciente é independente e se comunica, como Teo, até os mais severos, em que a comunicação não é verbal e o contato físico, evitado, mesmo com os pais. Por enquanto, a droga da Roche está sendo testada em autistas com quadros considerados leves a moderados."


"Alvarenga diz que o remédio em desenvolvimento, administrado em comprimidos, já foi testado em 200 pessoas com TEA nos Estados Unidos. Segundo ele, os resultados indicam que o medicamento inibe a ação da vasopressina e, por isso, auxilia na interação dos chamados comportamento adaptativos do dia a dia, que envolvem comunicação e habilidades motoras.
Apesar de o medicamento estar em fase 3 de testes, a última antes do pedido de registro, a Roche não arrisca estipular um prazo para que a droga esteja disponível no mercado.

Sinapses. Ainda em fase inicial, outra pesquisa relacionada ao desequilíbrio de uma substância no cérebro dos autistas também traz expectativa. Desenvolvido pela Universidade de São Paulo (USP), o trabalho aponta que pessoas com o transtorno produzem em excesso uma citocina específica - a interleucina 6. Segundo a responsável pelo estudo, a neurocientista Patrícia Beltrão Braga, do Instituto de Ciências Biomédicas, a substância é tóxica e, alta quantidade, capaz de reduzir o número de sinapses feitas pelos neurônios. 
'Bloqueamos a produção em excesso e conseguimos resgatar o número de sinapses e sua funcionalidade. O ensaio mostra que há uma neuroinflamação no cérebro dos autistas, e ela é provocada pelos astrocitos, que são células que sustentam os neurônios', diz Patrícia, que fez os testes em laboratório com base na produção de neurônios derivados da polpa de leite de indivíduos com autismo.
A vantagem da descoberta, segundo ela, é que já existem drogas capazes de bloquear a ação da IL 6 e, consequentemente, eliminar essa neuroinflamação. Se a pesquisa avançar, não seria preciso desenvolver um novo medicamento, apenas ampliar o uso de remédios existentes.
Para os pais de autistas, medicamentos que melhorassem, ainda que parcialmente, a interação social das crianças seriam um grande avanço. 'Sou muito cuidadosa: primeiro vem o conforto e o bem-estar do meu filho. Mas também sou muito corajosa. Cercada de garantias que não fariam mal, eu estaria disposta a testar novos mecanismos que pudessem tornar a vida dele mais tranquila', diz Juliana."

"PARA ESPECIALISTAS, LINHAS DEVEM SER VISTAS COM CAUTELA"

  • "Para especialistas em neurologia infantil, ambas as pesquisas seguem linhas promissoras, mas devem ser vistas com cautela por causa da complexidade do transtorno.
Segundo Marco Antônio Arruda, neurologista infantil e membro titular da Academia Brasileira de Neurologia, outros estudos já mostraram a relação da vasopressina com o comportamento antissocial, mas isso quer dizer que, regulando a produção dessa substância, o problema estaria completamente resolvido.
'Como o autismo é um transtorno multifatorial, dificilmente um medicamento que atua em um só alvo vai ajudar a controlar todos os comportamentos ou servir para todos os tipos de autistas', ressalta o especialista.
Para Erasmo Casella, professor livre docente de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP e neurologista da infância e adolescência do Hospital Israelita Albert Einstein, são as pesquisas que 'dão diferença', mas resultados definitivos deverão aparecer apenas no longo prazo.
'Muitas moléculas são pesquisadas, mas é necessário esperar o fim dos testes para saber se aquele medicamente vai apresentar um benefício de fato. Em relação à pesquisa da USP, será interessante se os pesquisadores conseguirem replicar o que foi feito em laboratório em modelos animais e, depois, em humanos'.
Os dois médicos destacam que, mesmo para a eficácia de novos medicamentos seja comprovada, a resposta ao tratamento poderá ser diferente de acordo com o paciente e o nível de transtorno. 'É difícil falar em cura, mas a melhora do funcionamento social do indivíduo já seria um grande passo', diz Arruda. F. C.


A notícia acima foi retirada do jornal O ESTADO DE S. PAULO - EDIÇÃO DIGITAL - Ano 139 - nº 45449, pág. A16. Metrópole. 25 de março de 2018, domingo (Acesso: 25/03/2018)

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