CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA MEMÓRIA!
"ESTRELA QUE NÃO SE APAGA"
"Revolucionário da física, exemplo de resiliência, ícone pop, Stephen Hawking, com suas teorias, moldou a forma como vemos o universo - e comoveu o mundo em sua morte"
Por: Filipe Vilicic
"Não fosse o bom humor atávico e genuíno de um homem que desde os 21 anos sofria de esclerose lateral amiotrófica, doença que paulatinamente lhe ceifou os movimentos, Stephen Hawking não chegaria a lugar nenhum - e tampouco nos levaria aonde nos levou, ao início de tudo, ao infinito. Na introdução de Uma Breve História do Tempo, de 1988, ele escreveu: 'Alguém me disse que cada equação que eu inclusive no livro reduziria as vendas pela metade. Assim, resolvi não utilizar nenhuma. No entanto, ao final, inclui mesmo uma, a famosa equação de Einstein: E = mc²'. O best-seller chegou a 10 milhões de unidades vendidas, e contando. Fez do físico teórico um ídolo pop, cujas as ideias começaram a circular como se fossem de fácil compreensão. Somava-se à beleza de seu raciocínio a precaridade imposta pelo estado de saúde, que limitara seu controle corporal à flexão de um dedo e aos movimentos voluntários dos olhos. Antes do fim, ele perdeu até esses últimos resquícios de controle, limitando-se a flexões de bochechas. Suas faculdades mentais, porém, continuaram intactas - bem como seu vivíssimo interesse por strip-teases femininos. Virou personagem de um episódio de Os Simpsons. Foi levado ao cinema em A Teoria de Tudo, 2014, que resultou no Oscar de melhor ator ao britânico Eddie Redmayne. A inconfundível voz metálica, emitida a partir de um sintetizador especialmente desenvolvido para ele, ecoou numa balada da banda Pink Floyd, Keep Talking."
"Mas, afinal de contas, como foi que um cientista de ideias ter herméticas e incômodas, por cutucar o que desconhecemos, ganhou a dimensão de Hawking, cuja morte, na quarta-feira, aos 76 anos, comoveu o mundo? A melhor resposta veio do astrônomo Carl Sagan (1934-1996) no prefácio da primeira edição de Uma Breve História do Tempo, com a clareza característica dos grandes evangelizadores do conhecimento: 'Excetuando as crianças (que não sabem o suficiente para não fazer as perguntas importantes), poucas pessoas dedicam tempo a indagar por que a natureza é assim; de onde veio o cosmo ou se sempre aqui esteve; se um dia o tempo fluirá ao contrário e se os efeitos vão preceder as causas; ou se haverá limites definidos para o conhecimento humano. Há crianças, e conheci algumas, que querem saber qual é o aspecto dos buracos negros; qual é o menor pedaço de matéria; por que é que nos lembramos do passado e não do futuro; como é que, se inicialmente havia o caos, hoje existe aparentemente a ordem; e por que há um universo'. Em outras palavras, Hawking voou porque pensou como uma criança, para quem as perguntas são sempre muito mais fascinantes do que as respostas."
"Essa pureza intelectual, permanente como os traços soltos de Van Gogh, que pareciam pueris e eram adultos, instalou Hawking em uma linha evolutiva que nasceu com Galileu Galilei, passou por Isaac Newton e chegou a Albert Einstein, agora com um curioso par de coincidências: Hawking nasceu em 8 de janeiro de 1942, precisamente 300 anos depois da morte de Galileu, e morreu em 14 de março, o mesmo dia em que nasceu Albert Einstein, em 1879. O que isso quer dizer? Nada, até onde sabemos. Hawking, ele próprio, brincavam com a data de seu aniversário, e possivelmente transformaria em piada, com seu humor ácido, a coincidência de sua morte. 'Cerca de 200 000 de outros bebês também nasceram naquele dia e não sei se algum deles posteriormente se interessou por astronomia', escreveu em sua autobiografia, Minha Breve História, publicado no Brasil pela Intrínseca, que também lança suas outras obras no país. De qualquer maneira, esse jogo de datas, mera casualidade, agrupa informações interessantes demais para ser subtraídas, ainda que seja impossível, é claro, explicá-las de modo científico, cartesiano. Atado à cadeira de rodas, com a mente a viajar - embora numa oportunidade tenha feito um voo em gravidade zero, a bordo de uma aeronave americana de testes para uma estação espacial, cuja foto, evidentemente, viralizou -, o gênio de Cambridge funcionava nesse diapasão antropológico. Tudo o atraía, inclusive que só a metafísica e a teologia explicam, mesmo que fossem tolices como esse casamento de enfermidades agora eternizado."
"Para Sagan, Uma Breve História era 'também um livro sobre Deus... ou talvez sobre a ausência de Deus'. Deus é citado 49 vezes no volume. Numa delas, Hawking chegou a Santo Agostinho (354-430) e à pergunta fundamental, a grande indagação que fazia ao filósofo inaugural do cristianismo: 'O que Deus fazia antes de criar o universo?'. Ao que Agostinho respondia, numa linda boutade: 'Antes que Deus criasse o céu e a terra, nada havia'. Em suas palestras, Hawking costumava dizer que 'Deus não é suficiente para explicar a origem do universo', e, dada essa insuficiência, ele passou a vida tentando buscar o princípio com 'P' maiúsculo - e nessa trilha alcançou o Big Bang e os buracos negros, pilares de seu pensamento, a gênese de uma contribuição indelével para a ciência. 'Suas teorias abriram um universo de possibilidades que estão sendo exploradas pela Nasa e pelo mundo', escreveu a agência espacial americana em nota oficial. 'Que você continue voando como o Super-Homem'."
"É certo que continuará voando, como uma estrela que nunca se apaga, a mais brilhante cosmologia moderna, porque suas ideias podem perdurar pela eternidade. Filho de intelectuais, ambos ligados à área das pesquisas médicas, Hawking começou cedo a refletir sobre as questões do espaço e do tempo. Na escola, era mau aluno, tanto que aprendeu a ler e a escrever apenas aos 8 anos e tinha notas ruins em matemática. No entanto, já aos 12 debatia com os colegas sobre como tudo o que existe teria surgido, o que lhe rendeu o apelido de Einstein. Chegou a recordar: 'Uma das coisas sobre as quais falávamos era a origem do universo e se foi necessário um Deus para criá-lo e levá-lo adiante'. Tamanha curiosidade infantil o seguiu na vida acadêmica, pelas universidade de Oxford e Cambridge. Na segunda, depois do consagrado, foi convidado a ocupar a cátedra de matemática mais cobiçada do mundo acadêmico, que fora exercida por figuras históricas do calibre de Isaac Newton, Charles Babbage e Paul Dirac.
Seu interesse pelo estudo dos buracos negros, que o fez imensamente famoso, e ancorou a vendagem de Uma Breve História do Tempo, surgiu num momento 'eureca', em 1970, pouco antes de dormir: 'Ao deitar, me dei conta de que poderia aplicar aos buracos negros a teoria de estrutural causal que eu havia desenvolvido para os teoremas da singularidade'. É uma frase complicada para leigos, mas seu significado acabou por chacoalhar os alicerces da física."
"Antes de Hawking, pouquíssimo se sabia desses colossais e enigmáticos fenômenos do cosmo. Especula-se que os buracos negros sugaram tudo ao redor, inapelavelmente. Porém, tal conclusão não combinava com muitas das bases da física, sobretudo com a ideia de que nenhuma informação contida nas partículas poderia se perder completamente. Nem explicava como os buracos negros poderiam ter o que se chamava de 'horizonte entrópico' - uma medida termodinâmica que traduz o completo caos. Para ser entrópico, seria preciso liberar calor. Se há calor, quer dizer que algo escapava dos buracos negros, e também da compreensão dos mais geniais cientistas de seu círculo.
Hawking apresentou soluções para essa charada. Primeiro, ao supor que no centro dos buracos negros havia uma singularidade, ou seja, um ponto ínfimo, de densidade dita infinita, capaz de sugar até a luz. Depois, e esse foi seu grande salto, estimou que algo deveria, sim, escapar da imensa força gravitacional desses fenômenos originados quando estrelas entram em colapso. E o que se libertaria da mais segura das prisões do universo. Para chegar a uma resposta, Hawking teve de recorrer à física quântica, explicam o que ocorre no mundo menor que o átomo. Segundo essa linha, cada partícula existente possui um par, uma antipartícula. Assim, quando uma matéria fosse sugada, uma dessas partículas, gêmea mas de sinal trocado, escaparia do presídio gravitacional, deixando a outra para trás. A essa fugitiva se deu o nome de 'radiação Hawking'."
"Todavia, e como é praxe na ciência, as elucidações conduziram a outros enigmas, novíssimos. O principal deles constitui um paradoxo. Ao beber tanto da física ligada à teoria da relatividade de Einstein, referente aos fenômenos cósmicos, quanto à física quântica, Hawking mesclou hipóteses conflitantes. Por exemplo, para a física mais tradicional, os buracos negros exterminaram toda a informação (os dados contidos, como se fossem bytes que circulam pela internet) que fosse sugada; para a física quântica, no entanto, seria impossível destruir qualquer informação que viaja entre planetas, estrelas e galáxias. Como ele resolveu esse impasse? Propondo que os tais bytes das partículas não poderiam, mas retornariam de outra maneira, inúteis. 'É como queimar uma enciclopédia: a informação contida na enciclopédia tecnicamente não se perde caso a fumaça e as cinzas sejam guardadas, mas é muito difícil de ser lida', disse o cientista (veja o quadro acima). Iconoclasta, Hawking, acompanhado do americano Kip Thorne, outra referência das pesquisas gravitacionais, fez uma aposta - o inglês era fã de jogatinas desde criança - sobre esse nó (haveria total destruição de toda a informação ou não?) com o igualmente renomado cientista John Preskill. Não se sabe exatamente quais eram os termos da provocação, mas Preskill ganhou, o que levou Hawking a lhe dar de presente uma enciclopédia de beisebol. 'Mas talvez devesse ter dado apenas as cinzas', brincou o físico britânico."
"Mesmo depois do unânime prestígio, dos best-sellers, da fama e das limitações corporais que culminaram com ele conseguindo se comunicar apenas por meio de um computador com um sensor atrelado a movimentos da bochecha, o gênio permaneceu ativo, com sua mente poderosa. Há dois anos, publicou um polêmico artigo sobre o paradoxo - para ser entrópico, seria preciso liberar calor; se há calor, algo escapava dos buracos negros - e ensaiou uma outra resposta. Segundo a nova suposição, as partículas ficariam estacionados no chamado horizonte entrópico (o limiar) do buraco negro, à espera de ser expelidas junto com a radiação Hawking. Mais recentemente, construiu outro raciocínio: 'Buracos negros não são tão negros quanto parecem. Eles não são essa prisão perpétua que todo mundo pensa. Coisas podem sair de lá para nosso universo ou para outro, paralelo'."
"Se suas teorias são tão revolucionárias, por que, afinal, ele não ganhou um Nobel da física? - alguns podem se perguntar. Ocorre que, na prática, nenhuma de suas hipóteses foi comprovada empiricamente, requisito básico para receber a láurea. Se é assim, suas teses poderão ser desmentidas um dia? É pouco provável, dada a fortaleza de suas conjecturas. Mas isso pode ocorrer. E, no entanto, Hawking jamais perderá valor, nunca deixará de inspirar."
"Foi assim com figuras como Galileu, Newton e Einstein, cujas ideias foram questionadas ao longo dos séculos. A influência de Hawking, como a de seus pares de outras épocas, é definitiva. Disse a VEJA o astrofísico Brian Greene, autor de O Universo Elegante e um de seus herdeiros intelectuais: 'Stephen Hawking era um pensador extraordinário. Ele transformou nossa compreensão do espaço e do tempo. Sua visão profunda sobre os buracos negros - mostrando que eles são absorventes, mas sim que podem retornar a informação que pegam para si - nos mantém ocupados há quarenta anos e continuará a fornecer alimento para o futuro. Quando a jornada fundir nossa compreensão da gravidade e da física quântica estiver completa em algum momento da história da humanidade, os cientistas olharão para as contribuições de Hawking com enorme gratidão'."
"Para além das conquistas científicas, Hawking faz história como símbolo da resiliência humana. Diante da doença degenerativa que levou médicos a decretar, quando ele era ainda muito jovem, que teria meros quatro anos de vida (veja o quadro acima) manteve-se impávido. Viajou para todos os continentes - inclusive a Antártica. Foi adorado pelos maiores artistas, governadores e, claro, cientistas de seu tempo. Mesmo com a linguagem limitada a movimentos singelos de dedos e da face, escreveu artigos e livros que são alicerces da civilização. E ainda se casou duas vezes e teve três filhos. Levava uma vida muitas vezes banal. E a partir dessa banalidade mudou nossa compreensão do universo."
Com reportagem de André Lopes
A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2574 - Ano 51 - nº 12. 21 de março de 2018. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.
SUGESTÃO
Após a leitura, sugerimos que assista a um pequeno vídeo que explica e fala sobre a vida e o legado de Stephen Hawking, produzido pelo canal do YouTube Fatos Desconhecidos. O idioma é o português.
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