CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA MEIO AMBIENTE!
"É O FIM DO CAMINHO?"
"Como as lições da tragédia de Mariana, em Minas Gerais, podem barrar o descaso e marcar um novo começo nas práticas da mineração no Brasil"
Por: Renata Valério de Mesquita
"Assistir, impotente, ao avanço de uma onda de 55 milhões de metros cúbicos de lama sobre cidades, pessoas, rios e ecossistemas por 679 km, durante semanas, soterrou todo o Brasil em indagações e repulsa. A ruptura ocorrida em 5 de novembro na barragem de Fundão, em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG), acarretou o despejo do equivalente a 22 mil piscinas olímpicas de rejeitos da exploração de ferro da mineradora brasileira Samarco e já é considerado o maior desastre socioambiental ocorrido no Brasil. Segundo a consultoria de riscos americana Bowkers Associates, é o pior acidente do mundo em cem anos de mineração, considerando-se o volume de lama vazado (entre 50 e 60 milhões de metros cúbicos), o percurso atingido (600 km) e o prejuízo estimado (US$ 5,2 bilhões). Embora não se conheçam ao certo todas as consequências e causas reais, a tragédia já tem sido cotada também como uma enorme oportunidade de evolução nacional.
O Brasil tem 663 barragens de contenção de rejeitos de mineração e 295 barragens de resíduos industriais. Apenas em 2008, 77 delas se romperam, segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA). Como o histórico indica, o acidente não era tão imprevisível como teria parecido num primeiro momento. Segundo o diretor de fiscalização do Departamento Nacional de Produção Mineral, Walter Arcoverde, a quantidade de acidentes com barragens no Brasil está muito acima da média mundial, de um por ano.
Desde o século 18, Bento Rodrigues, tal como muitas cidades mineiras, existia em função da mineração. Mas desapareceu por causa dela. E é possível que a Samarco seja enterrada junto, levando consigo todos os empregos, os cerca de R$ 5 bilhões pagos em impostos a Mariana e os quase R$ 10 bi pagos ao estado de Minas Gerais. Embora a mineradora fosse apontada nacional e internacionalmente como exemplar, e já tivesse ganhado vários prêmios de gestão são necessários muitos erros para acontecer um desastre de tal porte. E ainda não se pode calcular as perdas de biodiversidade e de vidas humanas. Até 11 de dezembro, havia 15 pessoas mortas e quatro permaneciam desaparecidas.
A primeira lição a se tirar, portanto, é que sustentabilidade empresarial passa necessariamente pelo cuidado com o meio ambiente e as comunidades do entorno. No início de dezembro já se calculava que a Samarco - empresa cuja propriedade é dividida entre a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton - teria com o desastre despesas de mais de R$ 20 bilhões (sete vezes o lucro da empresa em 2014) e ainda ficaria impossibilitada de operar.
'Faltaram planejamento e gestão de risco', avalia Carlos Piazza, especialista na área. 'Ou esse risco estava sendo negligenciado, oi, pior ainda, não era percebido'. Partindo do pressuposto de que tanques podem se romper, já que materiais e pessoas são falíveis, e havendo hoje tantas tecnologias a favor, Piazza diz que não há justificativa para acontecer um acidente desses que não tenha nenhum estudo prévio dos seus impactos.
'Existe computação avançada para calcular impacto e analisar todas as variáveis em caso de acidentes, considerando topografia, volume de massa envolvida, tempo de deslocamento', diz o consultor. No caso de uma barragem no alto de uma região povoada, esse sistema mostraria logo o alto risco de perdas de vidas humanas. Para se evitar isso, há ferramentas como sensores de monitoramento, sirenes de alerta e, sobretudo, um trabalho feito com a comunidade para desenhar rotas de fuga.
'A tecnologia resolve isso de forma simples, mas precisa de investimento', diz Piazza. A Samarco garante que tinha monitoramento com instrumentos supermodernos e especialistas da área, mas está claro que ele não funcionou. O próprio presidente da empresa, Ricardo Vescovi, reconheceu de público que nunca previra que a barragem pudesse descer da forma como aconteceu."
"A falta de contingenciamento de crise ficou mais evidente ainda quando a lama atingiu a região de Linhares (ES), uma estuário de preservação nacional, e chegou ao mar em 22 de novembro. Nove quilômetros de boias para conter o vazamento de petróleo foram usadas na promessa de que reteriam 80% dos resíduos. A tecnologia pensada para o óleo, que flutua na água, naturalmente não surtiu efeito para o material de maior densidade como a lama, que tende a ir para o fundo do leito."
"COMO TIRAR O PÉ DA LAMA"
"Quando a crise bate à porta, a melhor postura para enfrentá-la é manter transparência total, diz Piazza. Por experiência, ele sabe que as empresas têm dificuldade de falar, sobretudo quando o caso envolve a perda de vidas. 'As áreas jurídica e financeira não gostam por considerar que isso cria oportunidade para processos. Calar a imprensa, para ela não trazer notícia ruim, enterra a possibilidade de se falar algo bom também'."
"Infelizmente, não se viu nem transparência, nem abertura na atitude das empresas envolvidas, deixando espaço para muitas informações imprecisas. 'Com informação, a sociedade não cai nesse catastrofismo que a internet possibilita. Chegaram a dizer que manchas aparecidas a mil quilômetros de distância eram daqui, e isso gera um distúrbio muito grande', diz Joca Thome, coordenador nacional do Centro Tamar-ICMBio, ONG governamental de proteção às tartarugas marinhas."
"A principal lição que se pode tirar da tragédia, para o oceanógrafo, é que se deve olhar uma bacia como um todo, da nascente à foz. 'Não adianta tratar um pedacinho dela. Temos de olhar tudo'. Na gestão de risco do Tamar, até então, eram consideradas ameaças como falta de água, pesca predatória, atividade de petróleo, projetos de portos para a região, etc. 'Nunca imaginaríamos que uma barragem de rejeito de Mariana, a 600 km, atingiria a área mais preservada da bacia do rio Doce'.
Embora não tivesse contemplado especificamente esse problema em seus planos de risco, o centro de proteção das tartarugas marinhas já tinha ações de prevenção e mitigação diante de ameaças, e logo as pôs em prática,. Ninhos e filhotes recém-nascidos foram levados para lugares mais distantes, a fim de evitar o contato com a mancha vermelha. As fêmeas adultas, que circulam pela área entre dois e três meses nesse período, estão sendo monitoradas por exames de sangue regulares."
"Mas Thome reforça que há muito por vir. 'Ainda está sendo um aprendizado, estamos no meio da crise, continua descendo muito sedimento pelo rio'. Não se sabe se as chuvas volumosas previstas irão complicar ou lavar o rio. A lama 'cimentou' a superfície por onde passou. O abastecimento de água está suspenso. A pesca também, e os moradores das cidades afetadas que viviam dessa atividade estão pensando em como sobreviver nessa fase - que pode durar talvez uma década."
"Análises da qualidade da água do rio Doce chegaram a acusar toxicidade muito acima do permitido. Os rejeitos da mineração de ferro, entretanto, não envolvem mais que sílica e areia, o que levantou mais polêmica sobre o caso. Para consultores da área, não faria muito sentido usar quaisquer químicos e metais pesados no processo, já que isso apenas adicionaria custos. Seriam, então, rejeitos de outras atividades mineradoras da Vale ou resíduos dispensados in natura ao longo do rio?"
"SEGURO ATÉ QUE PONTO?"
"Entre o incerto e o duvidoso, o fato é que, por lei, a Samarco deve recuperar os danos ambientais causados por ela. A conta promete ser bem alta. Apesar de possuir uma apólice de seguro de responsabilidade civil por danos ambientais, a empresa está tão a descoberto quanto o meio ambiente diante do acontecido. Esse tipo de cobertura se restringe a ressarcir apenas danos corporais e materiais a terceiros identificados, lucro cessante e despesas judiciais.
'Com o nome de 'cláusula adicional de cobertura de poluição súbita e acidental', o leigo pensa que está coberto, mas uma das restrições desse seguro é que não estão garantidos danos a bens naturais', diz Walter Polido, especialista em seguros ambientais, coordenador do curso sobre o tema dado pela Escola Superior Nacional de Seguros. Essa é uma lição a ser aprendida: já existe um seguro específico para risco ambiental.
O seguro ambiental é uma apólice que cobre restauração do meio ambiente até o ponto em que ele estava antes da contaminação. Cobre grandes volumes de qualquer material no local errado (não precisa ser um produto perigoso). A lama em si não seria tóxica, assim como não seria um caminhão de sal, mas, em excesso, causa destruição de ecossistema e mortalidade de fauna e flora. O produto disponível no Brasil há mais de dez anos, garante a limpeza e a reparação na propriedade do cliente e fora dela. O ocorrido pode ser súbito (por acidente) ou gradativo, ao longo do tempo. Mas, antes de aceitar o risco, a seguradora verifica se existem áreas em que a companhia precisa melhorar suas práticas. A ideia é que a cliente se mantenha em conformidade para ficar menos propensa a acidentes, o que inclui um plano de gerenciamento de risco."
"'As empresas não contratam por falta de conhecimento mesmo. Não foram apresentadas a esse produto, porque os corretores, não o conhecem direito e as próprias seguradoras não fazem publicidade dele', afirma. O especialista considera o seguro ambiental um 'selo verde' para as empresas que entenderam a importância da proteção ambiental. Polido diz que é um mito a afirmação de que o seguro não é contratado porque é caro. Para ele, a apólice tem seu valor de risco, como qualquer outro seguro. 'Mas, depois da Samarco, o que é caro?', pergunta."
"Não se deve pensar, entretanto, que seguro ambiental é panaceia para todos os males. Na Europa, o marco regulatório de meio ambiente instituído em 2007 definiu que é obrigatório apresentar uma garantia financeira para assegurar a recuperação de danos ambientais. Entre as opções estão o seguro, a fiança bancária e a criação de um fundo próprio. No Brasil, diante desse tipo de tragédia, é comum aparecer uma proposta de lei no Congresso para tornar obrigatório o seguro.
'Não adianta repassar para a iniciativa privada a inapetência do Estado', diz. As leis brasileiras permitem esse tipo de barragem, o maior estado minerador do país tem apenas quatro fiscais; o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais nunca fez caso ao parecer do Ministério Público, de 2013, que alertava para essa tragédia.
'Com a cobertura midiática desse evento, o Brasil e a mineradora não serão mais os mesmos', afirma José Mendo de Souza, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Mineração e sócio da J. Mendo Consultoria, especializada em mineração. 'Por mais paradoxal que pareça, essa tragédia pode ser uma benção. Poderemos melhorar muito. O ser humano é assim, evoluímos na tentativa e erro'."
A matéria acima foi retirada da revista PLANETA - Ano 43 - edição 517, págs. 24, 25, 26, 27, 28 e 29. Janeiro/Fevereiro de 2016. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista PLANETA e a Editora Três.
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