CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA CIÊNCIA!


"EM DEFESA DOS BEBÊS"
"A ciência já oferece avanços estupendos para gerar crianças saudáveis, e mais novidades virão em breve - mas as questões éticas continuam a assustar"


Por: André Lopes

"Experimentos em hibridização de plantas". Foi em um artigo científico batizado com esse título e publicado em 1866  que nasceu o que hoje se conhece como genética. Nele, o autor do texto histórico - o monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884), formado em ciências naturais na Universidade de Viena - detalhava um experimento de sete anos de duração. No total, Mendel cultivou 30 000 plantas de ervilha, dissecando as partes reprodutivas com o objetivo de promover cruzamentos controlados que permitiam escolher atributos dos vegetais. Assim ele podia, por exemplo, manipular a cor das e o formato das sementes. No fim das contas, o pesquisador provou algo que já se intuía: certas características dos pais são transmitidas a filhos, netos, bisnetos. Ou seja, são hereditárias. Passado mais de 150 anos, tudo o que se sabe sobre o DNA tem como base a estupenda experiência de Mendel. Um detalhe a um só tempo extraordinário e preocupante é que a genética avançou a passos tão largos que hoje já se pode falar em "experimentos de hibridização". Sim, não mais experimentos apenas em plantas, mas em humanos. Técnicas de edição genética que já começaram a ser testadas nos anos 2010 permitem, de certo modo, que a ciência faça com bebês aquilo que o austríaco fez com ervilhas.
Não há dúvidas de que as conquistas cientistas nessa área abriram possibilidades de resolver muitos problemas relacionados à reprodução humana. Embora alguns desses avanços só venham a ser postos em prática em um período de dez a cinquenta anos, outros já estão sendo empregados (leia quadro abaixo). A lista de procedimentos bem-sucedidos é promissora. Em 2014, realizou-se o primeiro transplante de útero que realmente deu certo, no hospital sueco da Universidade Sahlgrenska, em Gotemburgo: uma mulher, infértil, recebeu o órgão de outra, fértil, e, com isso, pôde gerar um filho. Desde então, mais sete bebês nasceram graças ao método, no mesmo hospital. Em dezembro último, um avanço surpreendente foi anunciado no Brasil. Um médico obstetra Dani Ejzenberg, do Centro de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas, executou esse transplante com uma diferença fundamental: A retirada do útero da doadora foi realizada após sua morte. "A cirurgia é delicadíssima. A técnica, porém, se prova ideal para mulheres mais velhas que querem engravidar. Ou, pensando no futuro, até para possibilitar o mesmo a transexuais", disse Ejzenberg a VEJA. O obstetra paulistano realizou a operação em setembro de 2016. O feito, entretanto, foi divulgado dois anos depois, quando um artigo do médico saiu no periódico inglês The Lancet."


"No caso de transplantes de útero, a interferência ocorre, é claro, na mãe. Contudo, já é possível também atuar em embriões. O mais estarrecedor dos procedimentos nessa direção foi revelado em novembro do ano passado, pelo biólogo chinês He Jiankui. Foi quando o cientista apresentou a história das gêmeas Lulu e Nana, que tiveram o DNA modificado em laboratório. Mexeu-se nos embriões por meio de uma técnica chamada Crispr-Cas 9, que permite manipular o sequenciamento genético com a introdução de substâncias químicas. No processo das gêmeas, Jiankui desativou o gene CCR5, responsável por produzir proteínas que deixam o organismo vulnerável ao HIV - vírus presente do pai. Com a manipulação, as gêmeas nasceram imunes à aids. O resultado é uma grande notícia, mas traz questões de fundo altamente sensível e preocupante. Afinal, a edição genética de embriões humanos, tal como realizada por Jiankui, abre as portas para intervenções semelhantes às de Mendel. Ou seja: ela possibilita mudar a cor da pele, a textura do cabelo ou até mesmo traços comportamentais. Em outras palavras, dá asas aos mais perigosos anseios eugenistas, como os que levaram às catástrofes produzidas pelo nazismo, que buscava a pureza racial. Por esse motivo, a técnica de Jiankui é proibida em países como os EUA e Brasil. Na China, onde foi realizada, não há lei que a libere nem a proíba. Mas o governo parece ter julgado o ato ilegal. Dias após o anúncio da proeza, Jiankui sumiu; desconfia-se que tenha sido preso pelas autoridades."


"Entre os avanços científicos na genética, há possibilidades menos polêmicas. A fisioterapeuta Tatiana Weigand beneficiou-se de uma dessas conquistas. Na primeira tentativa de gravidez, em 2013, ela e o marido, Fernando, descobriram que ambos tinham a doença hereditária gangliosidose GM1, que afeta uma em cada 100 000 pessoas e atrasa o desenvolvimento motor e cognitivo. Eles não apresentavam sintomas da enfermidade, mas poderiam transmiti-la a um filho. Foi o que aconteceu. O primogênito do casal nasceu com a doença e, em decorrência de complicações, acabou falecendo dois anos após do nascimento. Antes da segunda gravidez, em 2014, Tatiana e Fernando souberam que era possível mapear o código genético de embriões fecundados inferno vitro. Não para editá-los, como realizou o biólogo chinês, mas para selecioná-los, a exemplo do que Mendel fez com ervilhas. Assim, o casal valeu-se da fertilização in vitro, e os embriões foram rastreados atrás de um que fosse livre da gangliosidose. Nasceram, então, saudáveis, os gêmeos Eduardo e Rafael. "Algumas pessoas próximas me julgaram, achando que o que fiz iria contra os planos de Deus", relatou a mãe. "É preciso compreender que a triagem não teve o intuito de escolher características superficiais e sim garantir a sobrevivência de meus filhos"."


"O procedimento é acessível a qualquer um que tenha como pagar em torno de 30 000 reais. Quem não dispõe dessa quantia pode recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS). Foi o que fez enfermeira Talitha Padua, paulista da cidade de Marília. Em uma consulta prévia, o marido, Rodrigo, já havia detectado que tem neoplasia endócrina múltipla, condição que leva ao desenvolvimento de tumores que reduzem a 50% a chance de um filho saudável. "Alguns médicos especulavam que, devido aos genes do meu marido, as chances de gerar uma criança saudável eram baixíssimas sem a triagem genética", lembrou ela, que decidiu apostar. Em um procedimento realizado pelo SUS no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, foi possível optar por um embrião saudável - e dele nasceu Davi, hoje com 4 anos."


"A tecnologia atual nem sempre detecta previamente doenças genéticas. A administradora de empresas paulistana Juliana Sena, por exemplo, entrou em desespero ao saber que sua filha, Giovanna, que nasceu em 2014, tinha anemia falciforme - doença que altera o formato dos glóbulos vermelhos - e estava em estágio tão grave que os médicos não davam à criança mais do que poucos meses de vida. A solução seria um transplante de medula óssea, mas não encontrava um doador compatível. Juliana, recorreu, então, à triagem genética. "Selecionamos um embrião para gerar meu outro filho, Matheus, de forma que ele tivesse células compatíveis", recordou a mãe. Matheus nasceu em 2016 e logo passou por uma cirurgia de transplante de células para sua irmã. Deu certo. Curada, Giovanna completará 5 anos em 2019."


"Em um futuro próximo, casos graves como o de Giovanna poderão ser solucionados de maneira mais simples. É o que aponta um experimento em curso com o americano Brian Madeux, de 44 anos. Ele nasceu com a síndrome de Hunter, anomalia cromossômica que cria deformações físicas. Em novembro de 2018, Brian tornou-se o primeiro indivíduo a submeter-se a um novo tipo de tratamento, que edita os genes defeituosos. Adicionadas à sua corrente sanguínea, substâncias manipularam células do fígado. Ainda não se sabe em que medida o tratamento teve êxito, mas, se vingar, a experiência mostrará que, no futuro, será  possível exterminar todas as doenças hereditárias. Já se testou até mesmo um método que mistura o DNA dos pais com o de uma doadora para diminuir a probabilidade de o filho nascer com anomalias. Exibida em 2016 por médicos mexicanos e americanos, a técnica mesclou genes para gerar uma criança sem síndrome de Leigh, que afeta o sistema nervoso e que poderia ter sido transmitida pela mãe."


"Ao que tudo indica, em poucas décadas qualquer pessoa poderá recorrer à genética para orientar a gestação. É um inegável progresso para garantir a saúde dos bebês. Entretanto, esse horizonte arrasta consigo a sombra de uma distopia aterrorizant, como a narrada pelo escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963) em sua obra-prima Admirável Mundo Novo (1932). No livro, conta-se a história de um mundo no qual as crianças são editadas geneticamente para que uma maioria nasça com déficits físicos e mentais, preparando-as para encarar trabalhos insalubres, enquanto uma minoria ganha aprimoramentos. Assim, os privilegiados acabam incumbidos, naturalmente, da tarefa de governar. Fora da ficção, deve-se atentar para o que disse He Jiankui, o pioneiro editor de genes: "A sociedade decidirá o que deve fazer a seguir"."


A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2626 - Ano 52 - n° 12, págs. 76, 77, 78, 79, 80 e 81. 20 de março de 2019. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.


SUGESTÃO

Separamos um vídeo-debate que esclarece algumas dúvidas sobre a edição dos genes com a técnica CRISPR. As imagens são do YouTube e o idioma é o português.


Neste outro, em formato de vídeo-aula, o professor de biologia explica a edição dos genes e o futuro da biologia nesse cenário. As imagens são do YouTube e o idioma é o português.


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