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DOSSIÊ INTOLERÂNCIA

AS FACES DA INTOLERÂNCIA
No Brasil e no mundo, a crise econômica e política, a falta de perspectivas e as distâncias culturais e sociais abrem espaço para discursos extremistas e impulsionam manifestações de intolerância, como racismo, homofobia, xenofobia e preconceito religioso


Por: Lisandra Matias

DO ÓDIO À BÁRBARIE
Impulsionados pelas redes sociais, episódios de intolerância se multiplicam no Brasil e no mundo, revelando uma sociedade cada vez mais discriminada e menos propensa ao diálogo



Os quatro posts acima, com conteúdo inflamado de ódio e rancor, são exemplos reais de mensagens extraídas das redes sociais. Elas conservam seu texto e grafias originais, conforme foram publicados e, posteriormente, reproduzidos no Dossiê Intolerâncias Visíveis e Invisíveis no Mundo Digital, elaborado pela agência de comunicação nova/sb. Esse tipo de comentário, propagado com frequência pela internet, representa uma das facetas das manifestações de intolerância que têm crescido no Brasil e no mundo nos últimos anos.

O agravante dessa situação é que os casos de intolerância não estão restritos à esfera virtual. Nos Estados Unidos (EUA), no episódio ocorrido em Charlottesville, na Virgínia, em agosto de 2017, mulheres e homens marcharam fazendo saudações nazistas e gritando palavras de ordem contra negros, imigrantes, homossexuais e judeus. Os confrontos deixaram uma pessoa morta e 19 feridos. Em São Paulo, em novembro de 2017, a presença da filosofa norte-americana Judith Butler, referência nos estudos da questão de gênero, mobilizou manifestantes progressistas (favoráveis à intelectual) e conservadores (contrários), que se enfrentaram com xingamentos mútuos. 

A esses acontecimentos juntam-se muitos outros que apontam para o recrudescimento das manifestações de intolerância, que assume formas diversas, como descriminalização contra negros, homossexuais, minorias étnicas, religiosas e, simplesmente, contra aqueles que pensam de um modo diferente.

O QUE É INTOLERÂNCIA

A palavra "intolerância" vem do latim intolerantia, que significa impaciência, incapacidade de suportar, falta de condescendência e de compreensão. Também compreende o sentido de inflexão, rígido e que não admite opinião ou posição divergente. No sentido oposto, "tolerância" foi definida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como "o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas do nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos".



A origem do conceito tolerância, como conhecemos hoje, está na Carta sobre a Tolerância, do filósofo inglês John Locke (1632-1704), publicada em 1689. Um dos principais precursores do liberalismo, Locke defendeu os direitos dos indivíduos e a liberdade religiosa, no contexto de defesa do fim do absolutismo: "ninguém, portanto, não importa o ofício eclesiástico que o dignifica, baseado na religião, pode destruir outro homem que não pertence à sua igreja ou à fé, de sua vida, liberdade ou de qualquer porção de seus bens terrenos".

No século XVIII, os autores iluministas - que afirmam o predomínio da razão sobre a fé, representando a visão de mundo da burguesia - também se dedicaram ao tema. Para eles, as ações intolerantes contrariavam os chamados direitos naturais dos homens, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. O pensamento iluminista influenciou a elaboração de Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948 (veja box abaixo).

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS COMPLETA 70 ANOS
Em 10 de dezembro de 1948, ainda sob os impactos das atrocidades cometidas durante a II Guerra Mundial (1939-1945), foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pela Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se de um documento histórico que definiu, pela primeira vez, os direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, origem social ou nacional ou condição de nascimento ou riqueza. Eles incluem, entre outros, o direito à vida e a liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação.
Em seu primeiro artigo, a Declaração afirma: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade".
Ao completar 70 anos, a Declaração se torna cada vez mais relevante em um contexto de intensificação da perseguição a minorias. Segundo a Anistia Internacional, a violência que afeta os civis nos conflitos internacionais e o tratamento dado aos refugiados na atual crise migratória concentram os principais focos de violações. A entidade também alerta para a repressão política, os atentados à liberdade de expressão e o aumento dos discursos de ódio na Europa e nos EUA.

RAÍZES DO ÓDIO

Embora tenha ganhado maior visibilidade e repercussão nos últimos tempos por causa da internet, a intolerância sempre acompanhou a história da humanidade. Já na Antiguidade Clássica, os romanos subjugavam os outros povos por meio da imposição de sua cultura e civilização, considerados superiores. Na Idade Média, os tribunais do Santo Ofício da Igreja Católica, ou Inquisição, capturavam, julgavam e puniam aqueles que defendiam doutrinas ou práticas contrárias às da Igreja. No Brasil, temos a perseguição dos índios, a escravidão dos negros africanos, durante mais de três séculos (XVI a XIX), e a tortura de opositores do regime militar (1964-1985).

Mas foi nos regimes totalitários, no qual o Estado domina todos os aspectos da vida social, que a intolerância encontrou um de seus campos mais férteis para se propagar. Arrasados financeiramente após a I Guerra Mundial (1914-1918), países como Itália e Alemanha passaram a ser comandados por uma liderança opressora, que prometia recuperar a economia.

Outro exemplo foi o que ocorreu na antiga União Soviética, quando Stalin assume o poder e implanta um novo regime, a partir de 1928, conhecido mais tarde como stalinismo. Em nome do socialismo, ele passa a controlar o Estado com poderes ditatoriais, persegue inimigos políticos, restringe liberdades individuais e promove a coletivização das terras. Durante seu governo, milhões de pessoas são presas, executadas ou enviadas a campos de trabalho forçado.

A palavra "fascismo", hoje utilizada para designar uma pessoa ou governo autoritário e repressor, surgiu em 1919, quando o italiano Benito Mussolini fundou o Partido Fascista, de caráter ultranacionalista. Em 1922, ele foi nomeado primeiro-ministro e assumiu o cargo com plenos poderes, passando a ser chamado de duce (incontestável, em italiano). Nos anos seguintes, o Partido Fascista passou a ser o único permitido, e adversários políticos foram perseguidos e mortos.



Outros regimes totalitários - principalmente o nazismo na Alemanha, e em menor escala o franquismo na Espanha e o salazarismo em Portugal - acabaram sendo identificados como fascismo, por compartilharem suas principais características: o cerceamento das liberdades individuais, a centralização do poder na mão de um único partido ou grupo, o nacionalismo, o militarismo e o expansionismo. A fim de garantir obediência ao governo, foram empregadas a violência física, as prisões arbitrárias, a censura e o exílio. Na Alemanha nazista de Hitler, essas manifestações deram origem ao mais brutal episódio de ódio da História: o Holocausto, massacre que vitimou mais de 6 milhões de judeus durante a II Guerra Mundial (1939-1945).

O QUE GERA A INTOLERÂNCIA

Um interessante entendimento das razões da intolerância é a antropóloga francesa Françoise Héritier (1933-2017). Segundo ela, a intolerância está associada à dificuldade de reconhecer a expressão da condição humana no que nos é absolutamente diverso. Ser intolerante seria "restringir a definição de humano aos membros do grupo; os outros, sendo não humanos, podem ser tratados como tais". Está aí uma das chaves para a compreensão das causas do aumento da intolerância nos últimos tempos. A ela se juntam outras:
  • Isolamento e cultura do medo As desigualdades sociais e culturais reforçam o isolamento dos indivíduos em grupos que não reconhecem no outro um semelhante, mas sim uma ameaça. Esse sentimento costuma ser materializado contra aqueles excluídos historicamente, como negros e índios. O temor do desconhecido torna-se mais real e ameaçador com a inclusão social e econômica desses grupos, como ocorreu no Brasil a partir de meados dos anos 2000. Nos países desenvolvidos, a chegada de refugiados da África e do Oriente Médio gera um sentimento de deslocamento social e econômico e de perda de laços identitários, que também leva a considerar o estrangeiro como inimigo.
  • Individualismo e imediatismo A substituição da ideia de coletividade e de solidariedade pelo individualismo, em que falta a experiência do lugar comum e do convívio social, leva o indivíduo a não considerar mais o outro e pensar apenas na satisfação imediata de seus desejos e interesses pessoais. Esse imediatismo também tomou o lugar da reflexão: a falta de interesse em ouvir argumentos contrários às ideias preconcebidas favorece a proliferação de atos e comentários intolerantes.
  • Crise política e econômica A falta de perspectivas de ascensão social abre espaço para a adesão a discursos extremistas e xenófobos, como os dos partidos de extrema direita. A crise fomenta o ódio e a discriminação a determinados grupos, identificados como os culpados pela crise. Ao mesmo tempo surge um terreno fértil para "salvadores da pátria", candidatos, grupos e partidos com discursos autoritário - segundo eles, a única maneira de colocar ordem no caos.
O PAPEL DAS REDES SOCIAIS

Se episódios de intolerância no Brasil e no mundo sempre ocorreram, é certo que a internet e, sobretudo, as mídias sociais impulsionaram a visibilidade, o alcance e a repercussão desses fatos. Com a internet, as discussões e as opiniões ganharam exposição pública e alcançaram um novo patamar. Um post intolerante, por exemplo, pode ser replicado para milhares de pessoas, em diferentes lugares do mundo, de forma ultraveloz e em tempo real.

O anonimato ou a sensação de impunidade, propiciada pela mediação tecnológica e pelo distanciamento físico, leva pessoas que normalmente teriam certo pudor em expor pensamentos preconceituosos e manifestar suas opiniões livremente, sem qualquer limite ético.



A forte polarização política e a necessidade de se impor uma determinada visão de mundo favorecem o surgimento de outros fenômenos na rede. Um deles são as chamadas bolhas virtuais. Por meio do seu histórico de navegação, as redes sociais fazem chegar a cada usuário conteúdos e opiniões que mais lhe agradam ou interessam, deixando de mostrar ideias divergentes. Pesquisas mostram que, quanto mais a pessoa está inserida nesse ambiente restrito, mais predisposta está em compartilhar conteúdos que confirmem suas crenças, sem se preocupar com a veracidade das informações - daí a disseminação das fake news (ou notícias falsas), que, por sua vez, retroalimentam o ciclo da intolerância.

A INTOLERÂNCIA POLÍTICA

Se vivemos em uma sociedade cada vez mais intolerante, é natural que o discurso de ódio também contamine o debate político. No processo de polarização política, o crescimento da extrema direita tende a levar ao crescimento da extrema esquerda - e vice-versa. E esses dois extremos, que parecem tão distantes, acabam por se aproximar, unidos pelo fio da intolerância. Segundo o cientista político francês Jean-Pierre Faye, a distância esquerda e a extrema direita é menor do que entre elas e o centro do espectro político. Um exemplo dessa percepção ocorreu no Brexit, o referendo de 2016 que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia. Partidários das extremas esquerda e direita do país votaram em favor do Brexit e mantiveram o discurso unificado na crítica à globalização e no fortalecimento da soberania dos britânicos diante dos europeus.

No Brasil, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em agosto de 2016, expôs a forte polarização ideológica que vinha tomando conta do país. De um lado estavam os que viram o afastamento da presidente como um "golpe", com o objetivo de deter o que avaliam como as conquistas sociais dos governos petistas, e que hoje criticam o governo de Michel Temer (MDB), pelos retrocessos nas questões sociais e ambientais, entre outras. De outro, os favoráveis ao impeachment, que responsabilizam o Partido dos Trabalhadores (PT) pela corrupção generalizada que levou o país a sua maior crise econômica e política das últimas décadas.

Como resultado, uma sucessão de ataques violentos e manifestações de ira - brigas entre familiares por divergência política, exclusão de amigos nas redes sociais e políticos vaiados em lugares públicos. A polarização ideológica que vem pautando a política nacional agora ameaça contaminar o debate que antecede as eleições de 2018, quando serão eleitos o presidente da República, governadores, senadores e deputados.

Com o crescimento dos extremos, sobra pouco espaço para a negociação e o consenso. A impossibilidade do diálogo coloca em risco o próprio sistema político e a democracia, que, pressupõem a convivência de ideias diferentes e a aceitação do outro. No limite, a intolerância representa a perda do que nos caracteriza como humanos e civilizados - a racionalidade, a empatia, a capacidade de se comunicar e resolver conflitos - e o retorno à barbárie.


ATUALIDADES: VESTIBULAR E ENEM foi retirado do livro GE - GUIA DO ESTUDANTE: ATUALIDADES: VESTIBULAR+ENEM - 1º semestre de 2018, págs. 60, 61, 62, 63, 64 e 65. 

SUGESTÃO

Após a leitura, sugerimos que você assista a este vídeo de uma pesquisa feita sobre a intolerância no Brasil e mostrada no Fantástico, da Rede Globo. Também é mostrado casos de intolerância de grande repercussão. As imagens são do YouTube, e o idioma é o português.


Neste outro, o vídeo também é sobre intolerância no mundo, que vem crescendo tanto quanto no Brasil. As imagens são do YouTube, e o idioma é o português.


Abaixo, um vídeo-debate produzido pelo JC Debate, da TV Cultura, que explica e mostra a disseminação das fake news e como elas podem influenciar a intolerância. As imagens também são do YouTube, e o idioma é o português.


Comentários

  1. Um muito obrigada para quem se deu ao trabalho de publicar esse Dossiê na internet.

    Parabéns pelo trabalho

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