INTERNACIONAL


"AMARGO REGRESSO"
"Aniquilada pela guerra, capital econômica síria começa a renascer de escombros com retorno de moradores"


Por: Yan Boechat
      ENVIADO ESPECIAL A ALEPPO

"Aleppo está destruída. Os edifícios de seis, oito andares que se espremem nas ruas estreitas da cidade antiga agora são ruínas. Em alguns deles, a fachada se foi, deixando à mostra o que um dia foi um lar de dezenas de famílias.
A cama pendurada, a cadeira diante de um espelho quebrado, cortinas que instalem em se manter presas.
Caminhar pelas ruas desertas expõe as entranhas de vidas partidas pelos ataques aéreos, pela artilharia pesada e pelas batalhas que, estima-se, tenham custado ao menos 100 mil vidas só aqui.
Nenhuma cidade na Síria foi tão castigada quanto Aleppo,  a capital econômica deste país fraturado por uma guerra civil que já dura seis anos sem final à vista.
Quase seis meses após o governo de Bashar al Assad ter reconquistado a cidade dos grupos rebeldes salafistas ligados à Al Qaeda e ao Estado Islâmico, a maior parte de Aleppo ainda não conta com serviços básicos.
Não há eletricidade nem água corrente. Não há coleta de lixo nem transporte. Entulho e escombros de prédios se acumulam nas ruas e, não muito longe, soldados do Exército e militares islâmicos continuam a combater.
À noite, a escuridão não raramente se ilumina com disparos de artilharia.
Ainda assim, centenas, milhares de pessoas estão voltando para cá todos os meses. Deixam campos de refugiados, as moradias improvisadas, a migração forçada para tentar retomar suas vidas.
A cada dia, são mais sírios que chegam para viver em casas semidestruídas, reabrir o comércio ou tentar retomar algo suspenso pela guerra.
A estimativa da ONU é que algo entre 1,5 milhão e 1,8 milhão de pessoas estejam vivendo em Aleppo. E a tendência é que o número aumente.
A destruição está concentrada na parte leste da cidade que tinha quase 2,5 milhões de habitantes antes da guerra começar e era principal polo industrial da Síria. As partes que estiveram sob o regime estão preservadas, com água encanada, eletricidade, lojas abertas. Na Universidade de Aleppo, umas das mais antigas da Síria, as aulas prosseguem."


"ASSIM É A GUERRA"

"Do outro lado, a história é outra. As duas Aleppos, tão próximas e tão distantes, mostram como esta guerra foi desigual após a chegada dos russos e seus aviões.
Abdl Al Kader Fallahaj tem dificuldade em caminhar com sua bengala pelas ruas repletas de sujeira e escombros da parte leste da cidade.
Aos 78 anos, ele voltou a viver aqui após cinco anos com parentes em um vilarejo perto da costa mediterrânea."



"No início de abril, preparava-se para abrir o pequeno mercadinho de utilidades domésticas que manteve por 35 anos. 'Vivi minha vida aqui, todos os dias, no calor e no frio, descia do meu apartamento para trabalhar no meu negócio. Viver sem isso, longe, foi a parte mais difícil da minha vida até agora. Estou feliz por estar voltando'.
A loja de Fallahaj está de pé, mas já não se parece com um mercado. Todos os equipamentos foram destruídos e, ao que parece, um incêndio tomou conta dos andares inferiores do prédio. Mas ele diz não se importar.
'O que se iria fazer, esperar que eles [os rebeldes] fossem embora, sacrificar ainda mais nossos filhos? Bombardear era a única maneira de expulsá-los. Vamos reconstruir tudo. Aos inocentes que perderam a vida, sinto muito, mas assim é a guerra', diz ele, que conta ter perdido ao menos 15 parentes na guerra civil, dois netos entre eles.
É difícil encontrar em Aleppo quem não conte as mortes de amigos e parentes às dezenas. Aqui, onde a aviação síria e russa fizeram bombardeios maciços contra áreas densamente povoadas, o assunto é sensível. Quem ficou na cidade e não a abandonou quando um acordo de remoção dos rebeldes foi feito, em dezembro, evita falar qualquer coisa que possa parecer contra o regime de Assad.
Se questionadas como filhos, pais ou irmãos morreram, responderam apenas que uma bomba veio ao céu. Ou que foi obra dos terroristas. 
Fatimah Tawel, 35, segue esse roteiro. Diz apenas que foi um morteiro que matou seus três filhos de 15, 14 e 11 anos. Ela não sabe de onde a bomba veio, ou talvez não faça diferença para ela. 
Era uma tarde de outono, há três anos, quando os três convenceram a mãe a lhes dar dinheiro para comprar um pacote de biscoitos no mercadinho da rua de trás. O morteiro, conta Fatimah, os atingiu. Morreram na hora. 
'O martírio deles me faz sofrer, penso neles todos os dias, mas assim quis Deus, não havia nada que pudesse fazer', diz com um leve sorriso.
Fatimah perdeu o marido poucos meses depois. Ela diz que ele foi sequestrado pelo Estado Islâmico, mas não tem ideia de seu paradeiro. Um dia, apenas, ele não voltou.
Foi depois disso que ela deixou Aleppo. Agora, com o fim das batalhas, voltou. Ela e a filha de três anos, nascida em meio à guerra, que ganhou o nome de Amal. 'Significa esperança em árabe'.
Mohamed Baruk também voltou há poucos meses e se mostra cheio de esperanças.
Aos 12 anos, passa 10 horas por dia vendendo chicletes nas redondezas da Cidadela de Aleppo, um dos pontos turísticos mais importantes da cidade que não foi completamente destruído.
Consegue até US$ 3 por dia (R$ 9,45) e, com o dinheiro, sustenta a mãe e três irmãos. O pai, conta, foi vítima de um morteiro enquanto estava trabalhando perto de casa. 'Ele foi para o hospital, mas não adiantou', diz, olhos úmidos.
Baruk não sabe ler. Nos últimos seis anos, não foi para a escola. Mas quer ser engenheiro. Não soldado, não jogador de futebol, como tantos garotos sírios. Quer ser engenheiro para reconstruir sua casa. 'Quero fazer a Síria crescer 1000%, vou ajudar a arrumar esses prédios'."


Notícia retirada do jornal FOLHA DE S. PAULO - EDIÇÃO DIGITAL - Ano 97 - nº 32.162, pág. A18. Mundo. 23 de abril de 2017. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à FOLHA DE S. PAULO.

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