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"VIÚVAS E ÓRFÃOS DA MATANÇA COTIDIANA"
"Por trás do número alarmante de policiais mortos no Rio, estão famílias esfaceladas pela perda súbita indignadas com tanto sangue derramado"


Por: Cássio Bruno

"Sair da frieza das estatísticas sobre a morte de policiais militares no Rio de Janeiro para o drama das famílias enlutadas é mergulhar em um poço de tristeza e desesperança, agitado de vez em quando por um vento indignação - os três sentimentos que predominam no cotidiano das mães e pais, mulheres e maridos, irmãs e irmãos, filhas e filhos dos policiais que morrem em decorrência da violência dos bandidos. Uma estatística é a mais dolorosa: há 71 órfãos dessa tragédia carioca de 2017. Quando o pequeno Téo, um bebê forte e sorridente de 4 meses, crescer um pouco, a perda será ainda mais lancinante. Ele jamais conhecerá o pai. Téo nasceu exatos 46 dias depois de o cabo Thiago de Oliveira Lance, de 31 anos, ter sido executado por dois criminosos na porta de sua casa, em Cordovil, na Zona Norte do Rio, em uma tentativa de assalto. 'Ele estava tão feliz com o filho que ia chegar... Sempre que saía de casa, beijava minha barriga. Nunca pensei que teria de criar o Téo sozinha', lamenta Lucília, viúva aos 29 anos.
Desde aquele triste 23 de fevereiro, véspera do Carnaval, Lucília incorporou à sua rotina um novo gesto: todo domingo, depois da missa, vai ao cemitério de Sulacap, na Zona Oeste, depositar flores no túmulo do marido. 'É uma forma de continuar conversando com ele', diz. Acabou ficando amiga de outra viúva, Bianca, que mora a quase 20 quilômetros de distância e a quem provavelmente jamais conheceria em outras circunstâncias. 
A aproximação ocorreu por uma necessidade inesperada. O marido de Bianca, o sargento Márcio Leandro Martins, foi carbonizado dentro do carro nove dias antes de o cabo Lance morrer. Dada a proximidade das mortes, os dois policiais dividem no cemitério uma placa de mármore de identificação, a de número 2631, e são vizinhos de cova. Uma ala que ocupa cerca de um terço da área total do cemitério, à direita do portão de entrada, está reservada a efetivos da PM. Lucília quis pôr uma foto do marido na placa de identificação e foi informada de que, para isso, teria de pedir autorização à mulher do sargento Martins, enterrado ao lado. Procurou Bianca para discutir o assunto e selaram a amizade diante da dor. 'Sofremos juntas', diz Lucília. Bianca gostou da ideia da foto, e as duas combinaram dividir o pagamento de 1 000 reais que o cemitério cobra pela nova placa. Pequenos gestos como estes, o compartilhamento das letras coladas lado a lado e a escolha dos retratos, amenizam as agulhas do tempo. Lucília vai seguindo adiante como pode. Diz ela: 'Ainda estou sem chão para planejar meu futuro. Enfrento um dia de cada vez'. Sua sogra, Lana, arrasada pela morte do filho, considera que nem tem mais futuro: 'Eu me enterrei com ele, naquele dia de fevereiro. Vivo no sofrimento'.
Os registros da Secretaria de Segurança mostram que, durante o ano passado, a Polícia Militar do Rio concedeu 1398 licenças psiquiátricas a PMs, a maioria por stress e depressão. Nenhuma repartição pública, oferece apoio à família dos mortos. E isso faz muita falta. 'Além de perderem uma pessoa querida de forma inesperada, os parentes desses policiais sofrem o trauma das mortes violentas, algumas com traços de crueldade', explica Valéria Tinoco, doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 'Junto com a tristeza, eles sentem medo e vulnerabilidade'. Os sintomas vão desde remoer constantemente na memórias as cenas do crime até episódios de ansiedade, insônia e dificuldade de concentração. O suporte psicológico à família, principalmente os filhos, é fundamental. 'Primeiro temos que cuidar da superação do trauma. Em seguida, tratamos do luto', diz a psicóloga. 
O que fazer? 'Agora, é criar as meninas e tentar viver', resigna-se Nataline, de 36 anos. Ela tem três filhas, de 5, 15 e 17 anos. O marido, o soldado Fabiano de Brito, morreu aos 35 anos fulminado por tiros perto da casa do casal, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Brito saiu para o trabalho às 5h30, fardado e, ao entrar no carro, foi abordado por dois assaltantes de moto. Em minutos estava crivado de balas. O roteiro é recorrente: os policiais e sua família vivem ali ao lado de onde o crime impera."


"Formado em 2014 por viúvas de PMs, o Movimento Esposas e Familiares: Somos Todos Sangue Azul está pedindo ao Ministério Público a garantia de atendimento psicológico aos parentes dos mortos, especialmente as crianças e os adolescentes. 'Hoje, as famílias e os próprios policiais estão sozinhos. Não há estrutura. O Rio de Janeiro sangra', reclama Rogéria Quaresma, uma das fundadoras do movimento. A indignação de Rogéria toca em um ponto que aprofunda ainda mais a cicatriz: a sensação de que o sacrifício da vida de um PM não leva a reação alguma, não recebe o devido reconhecimento da população nem das autoridades - nos Estados Unidos, por exemplo, a morte de um policial é chorada em comunidade. 'Meu marido saiu de casa para proteger o cidadão de bem e não voltou. O governo precisa querer mudar essa situação', diz a viúva Cláudia, de 34 anos, sobre a morte do soldado Luiz Otávio da Silva Júnior, de 32 anos, em abril. Silva Júnior morreu em pleno cumprimento da função e em local onde a segurança deveria ser inviolável. Foi atingido por um tiro de fuzil na base da PM em que dava plantão, em Nova Iguaçu. Pior: esperava por isso."


"Segundo Cláudia, o policial, pai de uma menina de 4 anos do primeiro casamento, sempre reclamava das más condições de trabalho. O conserto de viaturas quebradas dependia da contribuição de comerciantes das cercanias. Os coletes à prova de bala, além de vencidos, eram insuficientes e usados em sistema de rodízio na base. Na madrugada em que levou o tiro fatal, Silva Júnior foi trabalhar sabendo que o local estava para ser atacado por traficantes - seria o quarto confronto em quinze dias. 'Antes de dormir, liguei e perguntei qual era a situação. Ele disse que aguardava o ataque a qualquer momento', lembra Cláudia. Na investida de dez bandidos fortemente armados, o PM foi alvejado por um tiro de fuzil na perna direita. Passou nove horas na mesa de cirurgia, teve a perna amputada e acabou morrendo de infecção generalizada."


"Ao longo de 2017, o governo fluminense, em tamanho estado de penúria que não paga contas e atrasa o salário de todos os servidores, inclusive policiais, já gastou 4,9 milhões de reais em pensões a parentes de PMs mortos e 194 000 reais em enterros - dinheiro cujo destino bem que poderia ser a prevenção da violência que dilacera famílias. A do sargento Arthur Ribeiro Moura, de 47 anos, PM veterano que entrou na corporação em 2000, rompeu-se em janeiro, quando ele levou um tiro em um assalto na saída de um banco na movimentada Avenida Nossa Senhora de Copacabana, na Zona Sul carioca. Moura estava de folga e comemorava o recente ingresso do filho de 16 anos no ensino médio do prestigiado Colégio Pedro II. O adolescente, abalado, não teve coragem de ir ao enterro. 'Os policiais hoje em dia têm três inimigos: os bandidos; o governo em crise, que não oferece condições de trabalho; e a sociedade, que não valoriza seu trabalho', desabava a viúva, Wania, de 53 anos, vestida com uma camiseta com a foto de Moura e a frase 'O eterno herói de milhões de corações órfãos', associada a uma data, 27/1/2017. São sete meses de uma contagem perversa, que não para de aumentar. São 97 homens e mulheres, enfileirados num macabro mural, viraram estatística em um tempo cruel. Um olhar mais cuidadoso, mais próximo, demonstra que, por trás da frieza dos números, daqueles rostos valentes, há histórias de vida e luto que o Brasil precisa conhecer."


A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2544 - Ano 50 - nº 34, págs. 76, 77, 78 e 79. 23 de agosto de 2017. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.


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