JAMES HECKMAN EM "O PRIMEIRO EMPURRÃO"


"O prêmio Nobel de Economia diz que investir nos anos iniciais de vida de uma criança é o caminho mais certeiro para pôr um país na rota do desenvolvimento"


Por: Monica Weinberg

"O americano James Heckman, 73 anos, é reverenciado tanto em sua área de origem, a economia - que lhe rendeu o Prêmio Nobel em 2000 -, como na educação, que ele investiga com a curiosidade de quem ama calcular. Heckman criou métodos científicos para avaliar a eficácia de programas sociais e vem se dedicando aos estudos sobre a primeira infância - para ele, um divisor de águas. É sobre esse assunto que falará, na segunda-feira 25, no encontro 'Os desafios da primeira infância - Por que investir em crianças de zero e 6 anos vai mudar o Brasil', organizado pelas revistas EXAME e VEJA e apoiado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, pela Fundación FEMSA e pela United Way Brasil. Professor na Universidade de Chicago, Heckman veio uma dezena de vezes ao Brasil. Estava no Rio quando recebeu o telefonema de sua vida. 'Disseram-me que seria premiado com o Nobel, e eu achei que era trote', revela ele, que fala com rara propriedade sobre o país."

Monica Weinberg: "Por que os estímulos nos primeiros anos de vida são tão decisivos para o sucesso na vida adulta?"
James Heckman: "É uma fase em que o cérebro se desenvolve em velocidade frenética e tem enorme poder de absorção, como uma esponja maleável. As primeiras impressões e experiências na vida preparam o terreno sobre o qual o conhecimento e as emoções vão se desenvolver mais tarde. Se essa base for frágil, as chances de sucesso cairão; se ela for sólida, vão disparar na mesma proporção. Por isso, defendendo estímulos desde muito cedo."


Monica Weinberg: "Quão cedo?"
James Heckman: "Pode parecer exagero, mas a ciência já reuniu evidências para sustentar que essa conta começa no negativo, ou seja, com o bebê ainda na barriga. A probabilidade de ele vir a ter uma vida saudável se multiplica quando a mãe é disciplinada no período pré-natal. Até os 5, 6 anos, a criança aprende em ritmo espantoso, e isso será valioso para toda a vida. Infelizmente, é uma fase que costuma ser negligenciada - famílias pobres não recebem orientação básica sobre como enfrentar o desafio de criar um bebê, faltam boas creches e pré-escolas e, sobretudo, o empurrão certo na hora certa."

Monica Weinberg: "Qual é o preço dessa negligência?"
James Heckman: "Altíssimo. Países que não investem na primeira infância apresentam índices de criminalidade mais elevados, maiores taxas de gravidez na adolescência e de evasão no ensino médio e níveis menores de produtividade no mercado de trabalho, o que é fatal. Como economista, faço contas o tempo inteiro. Uma deles é especialmente impressionante: cada dólar gasto como uma criança pequena trará um retorno anual de mais de 14 centavos durante toda a sua vida. É um dos melhores investimentos que se podem fazer - melhor, mais eficiente e seguro do que apostar no mercado de ações americano."

Monica Weinberg: "Se isso é tão claro, por que a primeira infância não está na ordem do dia de quem tem a caneta na mão para decidir?"
James Heckman: "Há ainda uma substancial ignorância sobre o tema. Algumas décadas atrás, a própria ciência patinava no assunto. A ideia que predominava, e hoje pesa, é que a família deve se encarregar sozinha dos primeiros anos de vida dos filhos. A ênfase das políticas públicas é na fase de quem vem depois, no ensino fundamental. E assim se perde a chance de preparar a criança para essa nova etapa, justamente quando seu cérebro é mais moldável a novidade."

Monica Weinberg: "A classe política também evita olhar para a primeira infância por achar que esse é um investimento menos visível a curto prazo?"
James Heckman: "Os políticos podem, sim, considerar isso, mas estão redondamente enganados. Crianças pequenas respondem rápido aos estímulos de qualidade. Para quem tem o poder de decidir, deixo aqui a provocação: não investir com inteligência nesses primeiros anos de vida é uma decisão bem pouco inteligente do ponto de vista do orçamento público. Basta usar a matemática."

Monica Weinberg: "O que mostra a matemática?"
James Heckman: "Vamos pegar o exemplo da segurança pública. Há ao menos dois caminhos para mantê-la em bom patamar. Um deles é contratar policiais, que devem zelar pelo cumprimento da lei. O outro é investir bem cedo nas crianças, para que adquiram habilidades, como um poder de julgamento e autocontrole, que as ajudarão a interagir-se à sociedade longe da violência. Pois a opção pela primeira infância custa até um décimo do preço. Recaímos a velha questão: prevenir ou remediar? Como se vê, é melhor prevenir."

Monica Weinberg: "O senhor pode soar fatalista: ou bem a criança é estimulada cedo ou terá perdido uma oportunidade única para o aprendizado?"
James Heckman: "A discussão realmente abre uma margem para essa interpretação, mas não é bem assim. A mensagem jamais pode ser: depois dos 5 anos, já era. Desde que a criança esteja vivendo em sociedade, ela vai aprender. Existe na espécie humana uma extraordinária capacidade de se beneficiar ao ambiente. Só não podemos deixar de encarar o fato de que uma criança que tenha sido alvo de elevados incentivos conquistará uma vantagem para o resto da vida. De outro lado, quanto mais uma criança fica para trás, mais dificuldade ela terá para preencher as lacunas do princípio."

Monica Weinberg: "O senhor discorda então de uma ala de cientistas que vê as chamadas janelas de oportunidade para o aprendizado como algo mais definitivo?"
James Heckman: "Acho que há exagero nesse campo: é como se tivéssemos no cérebro janelas que se abrem por inteiro numa fase e se fecham por completo em outra. Dito isso, há, sim, momentos mais favoráveis para a aquisição de certos conhecimentos: se quiser falar um idioma sem sotaque, é mais apropriado começar aos 8 do que aos 16 anos."


Monica Weinberg: "A propósito dos 8 anos, o economista Adam Smith (1723-1790) dizia que as crianças eram todas essencialmente igual até essa idade. O senhor concorda?"
James Heckman: "Não. Smith tinha uma visão idealista segundo a qual todos seríamos iguais por natureza até esse ponto da vida e, só aí, começaríamos a nos diferenciar uns dos outros. Mas a ciência já deixou claro que há capacidades inatas que nos distinguem, como a noção espacial ou a habilidade numérica ou ainda o talento para piano, artes e xadrez. Reconhecê-las e incentivá-las cedo torna-se uma vantagem."

Monica Weinberg: "Que tipo de política pública de primeira infância tem surtido mais efeito?"
James Heckman: "O grande impacto positivo vem de programas que conseguem envolver famílias pobres, creches e pré-escolas, centros de saúde e outros órgãos que, integrados, canalizam incentivos à criança - não só materiais, evidentemente. O programa americano Perry, da década de 60, é um exemplo clássico de que o investimento em uma boa pré-escola produz ótimos resultados."

Monica Weinberg: "Por que esse modelo é bom?"
James Heckman: "Ele envolve ativamente os alunos em projetos de sala de aula, lapidando habilidades sociais e cognitivas, sob a liderança de professores altamente qualificados. A família mantém um estreito elo com a escola. Temos de ter sempre certeza de que a família está à bordo, qualquer que seja a iniciativa."

Monica Weinberg: "Não é irrealista esperar tanto de famílias que vivem na pobreza, como no Brasil?"
James Heckman: "Um bom programa de primeira infância consegue ajudar a família inteira, fazendo chegar até ela informações, boas práticas e valores essenciais, como a importância do estudo para a superação da pobreza."

Monica Weinberg: "Pesquisas brasileiras mostram que muitas crianças que frequentam creches e pré-escolas acabam se saindo pior nos primeiros anos de estudo do que outros que ficam em casa. O resultado o espanta?"
James Heckman: "Não. Já vi estudos que chegaram a conclusão idêntica nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa. Trata-se de uma questão sem resposta absoluta: tudo depende do tipo de incentivo que a criança tem em casa e daquele que receberá na creche. Não é que a escola faça mal, mas é preciso indagar: onde a criança tem mais a ganhar ou menos a perder?"

Monica Weinberg: "O que o Brasil pode aprender com a experiência internacional?"
James Heckman: "Os programas de maior retorno são justamente aqueles que se apoiam em uma rede e, através dela, levam às famílias toda a sorte de incentivos, de diferentes áreas que convergem. Aliás, o Brasil tem uma vantagem aí: o sistema público de saúde alcança todos os cantos e pode funcionar como ponto de partida para esse rede de estímulos. O país também deveria prestar atenção na qualidade dos professores: países como a Finlândia souberam valorizar a carreira docente - não apenas o salário, que fique claro - e colheram grandes resultados na educação desde cedo."

Monica Weinberg: "Existe um debate no Brasil sobre a extensão da licença de paternidade - a lei brasileira garante hoje apenas cinco dias ao pai. O senhor é a favor?"
James Heckman: "O princípio de o pai ter a chance de estreitar os laços com o filho desde o começo é bem-vindo. Os benefícios vão depender, porém, de como esse tempo será efetivamente aproveitado."


Monica Weinberg: "O senhor é um dos precursores de uma discussão que agora está em alta nas rotas educacionais: o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. É possível mesmo ensiná-las?"
James Heckman: "Sim, na escola e em casa. O grande erro nesse debate é tratar tais habilidades - autocontrole, resiliência, trabalho em equipe - como algo que não tem nada a ver com as habilidades cognitivas, o aprendizado de matérias propriamente ditas. Não existe essa fronteira. O bom professor está sempre ensinando as duas: ao aprender a ler e a soletrar palavras, a criança interage com amigos, forma vínculos, lida com emoções ligadas ao sucesso e ao fracasso - enfim, aprende a se comunicar de forma ampla."

Monica Weinberg: "Por que tantos educadores torcem o nariz quando se fala em habilidades socioemocionais?"
James Heckman: "Eles ainda estão aferrados à ideia obsoleta de que inteligência se resume a QI, um conceito de cinquenta anos atrás que não evoluiu com o mundo."

Monica Weinberg: "Ler para a criança desde cedo está no rol dos grandes incentivos de efeito comprovado pela ciência. Por que isso é tão poderoso?"
James Heckman: "Porque estuma ao mesmo tempo o gosto pela leitura, a capacidade de comunicação e a curiosidade para adquirir conhecimento. Se nada der errado, isso se dobrará por toda a vida."

Monica Weinberg: "O incentivo dos pais pode virar exagero?"
James Heckman: "Observo em famílias de classes mais altas uma tendência à proteção exagerada dos filhos. Considero isso um erro. Todo mundo deve experimentar não só as vitórias como também os fracassos. São eles, afinal, uma fonte essencial para o aprendizado."


CONHECIMENTO CEREBRAL ENTREVISTA foi retirado da revista VEJA - Edição 2549 - Ano 50 - nº 39, págs. 13, 14 e 15. 27 de setembro de 2017. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e à Editora Abril.


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