DOSSIÊ CIÊNCIA FORENSE

NAQUELA MESA TÁ FALTANDO ELE...
A ciência auxilia os familiares em busca dos restos mortais das 241 pessoas desaparecidas nos porões da ditadura militar brasileira 


Por: Thiago Tanji [Reportagem e Edição]
           Otávio Silveira [Ilustração]
           Feu [Design]


INTRODUÇÃO

A VERDADE AINDA QUE TARDIA
Trabalho de antropologia fornece foi responsável por desvendar a identidade das ossadas de dois brasileiros assassinados há 48 anos pela ditadura 




Para os familiares de Aluísio Palhano Pereira Ferreira, um encontro realizado no dia 24 de abril de 1970 marcaria a sua última lembrança em vida. Desde 31 de março de 1964, quando um golpe destruiu o presidente João Goulart e impôs uma ditadura militar ao Brasil, foram poucas as oportunidades de contato: considerado um dos principais dirigentes sindicais de sua época, Palhano teve seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional n° 1. Exilou-se no México, passou a viver em Cuba e só retornou ao país em 1970, de maneira clandestina. Naquele tempo, ele vazia parte da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), um dos grupos que pegaram em armas contra o regime. Após o breve encontro com sua família, restam poucos registros do que teria ocorrido com ele. O silêncio só seria quebrado em 1978, quando uma carta de um companheiro de prisão afirmou que Palhano fora preso, torturado e morto brutalmente pelos agentes do Estado. Durante 47 anos, Palhano constaria na lista das 244 pessoas cujos restos mortais desapareceram por ordens da ditadura. Publicado em 2014, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade registra que 434 indivíduos foram assassinados pelo governo por causa de sua situação política.
No dia 3 de dezembro de 2018, durante o 1° Encontro Nacional de Familiares de Pessoas Mortas e Desaparecidas Políticas, foi feito um anúncio esperado há décadas pelos entes queridos de Palhano: sua ossada fora identificada na pesquisa coordenada pelo Grupo de Trabalho Perus, criado pelo governo federal em 2014 para investigar mais de 1,3 mil ossadas que foram depositadas em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, localizado no bairro paulistano de Perus. "Mais do que analisar os ossos por meio do exame de DNA, estabelecemos um universo de busca com a investigação de documentos e o diálogo com os familiares", afirma a historiadora Márcia Hattori, que atuou no Grupo de Trabalho Perus entre 2014 e 2016 (conheça as etapas da investigação no quadro abaixo). Além de Palhano, o grupo de pesquisadores ajudou a identificar, no ano passado, a ossada de Dimas Antônio Casemiro, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), também assassinado sob tortura, em 1971. Os restos mortais foram devolvidos à família, que os enterrou de maneira digna na cidade paulista de Votuporanga, terra natal de Casemiro.

EM BUSCA DAS RESPOSTAS
As etapas para identificar os restos mortais de Aluísio Palhano e Dimas Casemiro

1
VASCULHANDO DADOS
Pesquisadores reúnem informações dos desaparecidos na época em que estavam vivos: suas características (idade, altura, alguma doença) e relatos do momento da prisão - onde aconteceu, possíveis testemunhas do local para o qual o preso foi levado e possíveis relatos das torturas sofridas.

2
LIMPEZA DAS OSSADAS
É necessário fazer um trabalho de retirada de terra e sujeira dos ossos, que foram ensacados e ficaram em más condições após a descoberta da vala clandestina do Cemitério de Perus. Nessa etapa, os profissionais retiram pequenos fragmentos de ossos e eventuais fios de cabelos nos crânios. 

3
MOMENTO DE ANÁLISE
Monta-se o esqueleto e realiza-se a inspeção de suas características, como fraturas, perfurações e marcas de inflamações dos ossos. Algumas marcas indicam uma possível tortura: em vez de uma fratura repentina, os ossos apresentam um dano contínuo até o momento da morte.

4
TESTE DE DNA
É realizado o cruzamento de dados do relatório inicial das características do indivíduo com as informações da ossada. Feita a triagem, retira-se a amostra do DNA e o material é enviado a um laboratório estrangeiro. A informação genética é comparada com as amostras coletadas de familiares do desaparecido.

OS ESQUELETOS NO ARMÁRIO DOS GENERAIS
Construído durante a ditadura, o cemitério em Perus escondeu vala clandestina com milhares de mortos 

Nomeado prefeito de São Paulo por indicação do presidente-marechal Artur da Costa e Silva, Paulo Maluf iniciou, em 1971, a construção de um cemitério no bairro do Perus, região até então pouco habitada na zona norte da cidade. O local se tornaria um foco de suspeitas ainda no ano de 1979: graças a investigações dos familiares de desaparecidos políticos, foi encontrado o corpo de Luiz Eurico Tejera Lisboeta Lisboeta Lisbôa, que fora enterrado ali com uma identidade falsa. A partir daí, aumentariam as denúncias de que o cemitério abrigava um local para a ocultação de cadáveres de vítimas da ditadura militar. A pressão para que o Estado apurasse o caso só daria resultados em 1990, quando a prefeita Luiza Erundina (filiada à época ao Partido dos Trabalhadores) autorizou as buscas pela vala clandestina. Devido a informações dos coveiros, foi possível encontrar o local que guardava centenas de sacos repletos de ossos.
Por incrível que pareça, um trabalho consistente para a identificação dos restos mortais só foi iniciado em 2014, com a criação do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), que pertence à Unifesp. Fazendo parte do Grupo de Trabalho Perus, a instituição foi responsável pela organização de 1.047 caixas com ossos, descobrindo cerca de 1,3 mil indivíduos. Entre esses mortos, os pesquisadores buscam 39 desaparecidos políticos da época da ditadura, que provavelmente foram enterrados com identidades falsas no cemitério. As centenas de outros mortos seriam vítimas dos esquadrões da morte e crianças que provavelmente morreram por um surto de meningite no início da década de 1970, além de pessoas enterradas como indígenas.


DOSSIÊ CIÊNCIA FORENSE foi retirado da revista GALILEU - Edição 334, págs. 35, 36 e 37. Maio de 2019. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista GALILEU e à Editora Globo.



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