JULIE LYTHCOTT-HAIMS DIZ "O FRACASSO FAZ BEM ÀS CRIANÇAS"


Na edição desta semana, 5 de agosto, a colunista Stephanie Sachs Feder da revista Veja, entrevistou a ex-reitora de Stanford, Julie Lythcott-Haims por telefone. A reportagem tem como objetivo principal, descobrir a opinião da ex-reitora sobre os "pais que protegem demais seus filhos". A entrevista completa você confere a seguir. Os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista Veja, e a divulgação prioriza apenas, compartilhar as informações e garantir acesso ao conhecimento para o público de forma geral. O Conhecimento Cerebral respeita qualquer tipo de opinião e por isso, não é a favor de qualquer tipo de plágio. Ainda incentivamos o apoio à qualquer veículo de comunicação, que trabalhe e priorize para a elaboração de informações úteis e verdadeiras.


Por Stephenie Sachs Feder:

"No início dos anos 2000, então reitora da Universidade Stanford, Julie Lythcott-Haims começou a notar algo curioso no comportamento de seus alunos. Estudantes de 20 e poucos anos, que em breve estariam formados e trabalhando nas melhores empresas, compareciam à sua sala invariavelmente acompanhados do pai ou da mãe. E, quando ela lhes perguntava o que queriam de seu futuro, olhavam para os pais em busca de uma resposta. Foi a partir dessa experiência - e da sua própria, como mãe - que ela passou a estudar o overparenting, expressão americana para o hábito de proteger excessivamente seus filhos. O fenômeno surgiu quando a geração do pós-guerra, tratada com rigidez pelos pais, mas influenciada pela contracultura dos anos 60 e 70, decidiu criar suas crianças de forma diferente - menos rigor e mais amor, menos cobranças e mais compreensão. Os exageros na aplicação da fórmula, argumenta ela, ajudaram a produzir uma geração de adultos incapazes de decidir por conta própria e com dificuldades de se adequar ao mercado de trabalho. Julie Lythcott-Haims deu a seguinte entrevista a Veja, por telefone."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "A senhora afirma que esta é a primeira geração de 'adultos-crianças' da história. Como eles são?"
Julie Lythcott-Haims: "Trata-se de pessoas que não se sentem capazes de tomar as próprias decisões nem de lidar com contratempos e decepções. Ao primeiro sinal de problemas, pegam o telefone ou teclam para os pais para pedir orientação. Ora, um adulto é, por definição, alguém capaz de refletir e descobrir como lidar com determinada situação."


Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Mas adultos também pedem orientações e conselhos. A diferença é a frequência com que os adultos-crianças fazem isso?"
Julie Lythcott-Haims: "A diferença é que fazem isso ao primeiro sinal de que algo não deu certo. A atitude de um adulto é refletir sobre uma questão, chegar a algum diagnóstico e aí, talvez, entrar em contato com alguém em quem confie e dizer: 'Estou com dificuldade para resolver essa situação. O que você acha?'. Dessa forma, o pensamento e a estratégia do indivíduo passam a fazer parte de algo que ele elaborou. Essencialmente, um adulto coloca questões a si mesmos antes de colocá-las a seus pais."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Como pensam esses 'adultos-crianças'?"
Julie Lythcott-Haims: "Eles têm pouca confiança em si mesmos. 'Sou incapaz de fazer isso sozinho' é o pensamento recorrente - afinal, durante toda a vida, alguém sempre fez tudo por eles. Na psicologia, isso se chama 'desamparo aprendido', algo que vem da falta de conexão entre esforço e resultado. Nesses meus treze anos como orientadora em Stanford, vi muitos alunos que padecem desse mal - a ponto de não saberem sequer pedir orientações na rua."



Stephenie Sachs Feder (VEJA): "E isso vale também para situações profissionais?"
Julie Lythcott-Haims: "Sim, sobretudo para situações profissionais. Numa empresa, as coisas não orbitam em torno do empregado e suas necessidades - o empregado não é o centro do mundo. O que se espera dele é que contribua para o crescimento da empresa e dos colegas - seja útil, ajude antes que lhe peçam, antecipe o que precisa ser feito. Ocorre que os pais desses 'adultos-crianças' sempre determinaram o que eles tinham de fazer, isso os impediu de desenvolver esse tipo de habilidade - pensar por si próprios e planejar o próximo passo. As consequências de uma vida excessivamente gerenciada pelos pais se refletem de maneira muito mais acentuada no trabalho."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Mas as próprias empresas não se adaptaram a esses 'adultos-crianças', de certa forma?
Julie Lythcott-Haims: "Sim, o exemplo perfeito aqui são as startups (empresas jovens e inovadoras) do Vale do Silício, que oferecem infinitos mimos a seus empregados. Eles trabalham muito duro, mas todo o ambiente é voltado para satisfazer a suas necessidades, incluindo a de diversão. A comida é preparada por chefs ótimos, as roupas de todos são lavadas lá. Eu me pergunto: por que tantos adultos dessa geração vão para a 'terra das startups' e o mundo das tecnologias? Porque o local de trabalho foi adaptado para ser uma extensão da casa da infância deles. Mas o que acontece se alguém começa sua vida profissional num lugar assim e depois vai para um lugar tradicional? Certamente ficará muito desapontado. E talvez não consiga se adaptar."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "A senhora fala em três tipos de pecados dos pais: o 'superdirecionamento', a 'superproteção' e a 'superajuda'. Pode explicá-los?"
Julie Lythcott-Haims: "Os pais superprojetores são aqueles que acreditam que qualquer coisa pode machucar seus filhos e, por isso, preferem que eles estejam sempre dentro do seu campo de visão. Tomam sempre o partido das crianças contra quem que que seja - o juiz do jugo do futebol ou o professor que as criticou - e costumam dizer que todo esforço dos filhos é 'perfeito'. Os que pecam pelo 'superdirecionamento' são os que definem o que seus filhos devem estudar, como devem brincar, que atividades devem praticar e em que nível, que faculdades valem a pena, que curso é melhor fazer, que carreira precisam seguir. Eles não só resolvem os problemas dos filhos como moldam seus sonhos. O tenista Andre Agassi é um exemplo típico dessa criança."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Por quê?"
Julie Lythcott-Haims: "Eu o cito apenas porque ele mesmo já disse: 'Meus pais direcionaram demais minha vida'. E isso fica claro quando se lê a autobiografia do esportista. O pai de Agassi era tão convencido que o filho deveria ser jogador de tênis que transformou isso na missão de sua vida. Mas o garoto não amava o esporte. Então, o que temos? Uma estrela do tênis, mas um tanto infeliz. Isso é comum quando as pessoas seguem trajetória profissional forçada pelos pais - ou, simplesmente, para agradar-lhes."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "E como se caracterizam os pais da categoria que a senhora chama de 'superajuda'?"
Julie Lythcott-Haims: "São os que acompanham as crianças em todas as atividades, no esporte ou na escola, e agem como seu concierge (vigilante dos filhos), até quando já são quase adultos. A mãe de uma estudante do 2º ano de Stanford, por exemplo, ligava todo dia para acordá-la, e ainda tinha na própria agenda todos os deveres e provas dela, para evitar que a filhe perdesse os compromissos." 

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Como os pais podem saber se caíram na armadilha de confundir amor demais com cuidado excessivo?"
Julie Lythcott-Haims: "Em primeiro lugar, eles têm de aceitar o fato de que o trabalho, como pais, é sair desse cargo algum dia. E que o objetivo é criar aquela pequena pessoa para que ela seja capaz de se cuidar. Não se trata de largar os filhos no meio da floresta para que se virem. Mas, no século XXI, cuidar de si próprio significa escrever seu currículo sozinho, fazer uma entrevista de trabalho, arrumar um emprego. E ter as habilidades necessárias para manter-se empregado, ser capaz de trabalhar duro e em equipe, ser gentil com os demais, ganhar um salário, pagar suas contas, descobrir como ir de um lugar a outro, cozinhar... E tudo isso sem ter de, a toda hora, perguntar à mamãe ou ao papai como se faz. Imaginar que algo pode fazer com que você um dia não esteja mais aqui para ajudar seu filho é um bom exercício: 'E se alguma coisa acontecer comigo?'. Nenhum de nós quer imaginar isso, mas é nosso dever como pais mamíferos preparar nossa cria para esse triste dia."




Stephenie Sachs Feder (VEJA): "E no dia a dia?"
Julie Lythcott-Haims: "Não há dúvida de que os pais deve dar tanto amor quanto puderem aos filhos. As crianças querem ter certeza de que são amadas e valorizadas. Mas não é cruel pedir que os filhos auxiliem nos afazeres domésticos, por exemplo. Isso vai ajudá-los a se desenvolver. O objetivo deve ser dar oportunidades para que desenvolvam sua independência. Eu me lembro da primeira vez que pedi ao meu filho que fosse ao supermercado para comprar algo que tinha esquecido. Ele não queria ir. Falei que precisava da ajuda dele, que o percurso não era longo, que ele tinha ido mais longe com os amigos. Ele foi e, quando voltou, estava orgulho de si mesmo. Foi uma conquista para ele e para mim. Pode parecer algo menor, mas para as crianças sempre há uma primeira vez. O papel dos pais é encontrar as oportunidades e oferecer a elas a chance de aprender."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "E como descobrir o limite a partir do qual dar independência a um filho pode expô-lo a riscos?"
Julie Lythcott-Haims: "É difícil, mas é preciso deixar que as crianças vivam para que virem adultas. Não podemos segurá-las em nossos braços a vida inteira, cobri-las com plástico-bolha e mandá-las para o mundo inteiramente protegidas de tudo. Temos de fortalecer seu caráter, sua determinação, seu senso de 'eu me machuquei, mas estou bem'. Pode soar cruel, mas é bom que as crianças se machuquem na infância, e não falo apenas no sentido físico. Porque o único modo de se tornarem resistentes e capazes de lidar com as questões quando crescerem. Não há um manual que descreva cada passo. Mas é preciso que os filhos se tornem resistentes, preparados também para as coisas mais difíceis que estão por vir."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "No Brasil, existe a 'geração canguru', composta de adultos de 25 a 34 anos que ainda moram na casa dos pais. Isso tem a ver com essa superproteção?"
Julie Lythcott-Haims: "Não conhecia esse termo, é maravilhoso. Em tese, não há nada de errado no fato de filhos nessa idade mararem com os pais se não tiverem dinheiro para morar sozinhos em um lugar desejável, por exemplo. O que está errado é se os filhos, nessa idade, não se comportarem como adultos - não ganharem um salário, não contribuírem financeiramente para a casa. Resumindo, se moram lá e se comportam como se tivessem 11 anos, sem levantar um dedo para ajudar, sem gastar seu dinheiro nem sequer para ajudar no supermercado.

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Há também os 'nem-nem', que nem estudam nem trabalham.
Julie Lythcott-Haims: "Não estudar e não trabalhar é um desastre. Não somente para aquela família, mas para o país em que elas vivem. São pessoas que não vão contribuir para a sociedade, não vão pagar impostos, não serão cidadãos úteis. É um conceito assustador."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Como os 'adultos-crianças' vão criar os próprios filhos?"
Julie Lythcott-Haims: "Não faço ideia, porque a geração do milênio foi a primeira a ser superprotegida em massa. Os primeiros grupos de crianças que tinham a agenda toda feita pelos pais são os nascidos em torno de 1980. Logo, eles agora têm 35 anos. Muitos já têm filhos, mas ainda não sabemos como seus filhos estão se virando no mundo. Realmente espero que essa geração empurre o pêndulo de volta para outra direção, para criar adultos competentes, confiantes e corajosos."

Stephenie Sachs Feder (VEJA): "Bob Dylan escreveu que 'não sucesso como o fracasso'. Até que ponto concorda com isso?"
Julie Lythcott-Haims: "O que todos os tipos de pais que protegem em excesso têm em comum é o medo do fracasso. Eles têm medo de que, se seus filhos passarem por um fracasso, avida delas seja arruinada. E eles estão errados. Para aprender, é necessário tentar, fracassar, aprender com isso. E aí tentar de novo, até finalmente ser bem-sucedido. São os pequenos fracassos da infância que desenvolvem as habilidades, as competências e a confiança dos adultos. O fracasso é talvez o melhor professor da vida, e ficamos mais fortes quando somos desafiados."



A entrevista acima foi retirada da revista VEJA, edição 2 437 - ano 48 - nº 31, págs. 15,18 e 19. 05 de agosto de 2015. Todos os direitos são reservados exclusivamente a VEJA e a Editora Abril.




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