CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA HISTÓRIA!


"O HOMEM QUE VOAVA"
"Não é ufanismo, mas mérito: há 115 anos, o brasileiro Santos Dumont se consagrou como o primeiro a navegar pelos ares, e, há 110, se tornou um dos pais do avião"


Por: Filipe Vilicic

"Sei que as pessoas riem de mim. Mas, acima das nuvens, não posso ouvi-las'. Era o que costumava responder o inventor mineiro Alberto Santos Dumont (1873-1932) àqueles que o viam como maluco por desejar ser o primeiro indivíduo a decolar, controlar o voo e pousar uma máquina que então chamavam de 'mais pesada que o ar'. Ou seja, ele queria se tornar o primeiro homem a navegar pelo céu com o que hoje conhecemos como avião. Aos olhos do século XXI - no qual, a qualquer momento, há 10 000 aeronaves comerciais no ar -, tal presunção pode parecer banal. Contudo, na virado do século XIX para o XX, tratava-se de uma das maiores ambições humanas. Que, aliás, parecia inalcançável, e, por isso, os que  se apresentavam como aviadores eram vistos como doidos. Maluco ou não - há quem defenda que, sim, ele tinha distúrbios mentais -, Santos Dumont se tornou o primeiro homem a dominar os céus. Inicialmente, há 115 anos, em 19 de outubro de 1901, ao circundar a Torre Eiffel, em Paris, com seu balão dirigível nº 6 (veja logo adiante). Depois, em 23 de outubro de 1906 - já lá se vão 110 anos - e, na sequência, em 12 de novembro, ao decolar com o seu extraordinário aparelho mais pesado que o ar, o 14 Bis, nos arredores da capital francesa (veja mais adiante). Para muitos - não é unanimidade, pois os Estados Unidos é comum que se apontem os irmãos Wright, americanos, como os pioneiros -, o voo do 14 Bis entrou para os livros como a primeira vez em que um ser humanos foi, digamos, para o alto e avante. Assim, o brasileiro se consagrou como um dos nomes mais relevantes da história da civilização."


"Nascido em João Gomes - hoje, cidade que leva o nome de Santos Dumont -, Minas Gerais, em 20 de julho de 1873, o aviador tinha origens abastadas. Seu pai, Henrique Dumont, era um dos maiores plantadores de café do planeta, com fazendas em São Paulo. A mãe, Francisca, filha do comendador e industrial Francisco de Paula Santos, foi quem, de início, abasteceu o marido com uma herança, que viria a ser multiplicada pelo companheiro. Santos teve cinco irmãs e dois irmãos. Entre os homens, era o caçula da família. 'Um dos elementos cruciais da biografia do inventor é que ele sempre se sentia completamente diferente das outras pessoas, constantemente deslocado', disse a VEJA o escritor holandês Arthur Japin, autor de O Homem com Asas, romance histórico baseado na vida do brasileiro, publicado neste ano no Brasil.
Apesar de mesclar informações reais com pequenas inserções ficcionais - a exemplo da personagem Guilhermina, babá protagonista -, O Homem com Asas é a obra que melhor buscou mergulhar na mente de Dumont. 'Até então, biógrafos e historiadores preservavam, em demasia, detalhes pessoais da vida desse gênio', afirma Japin, cujos livros, inspirados em figuras históricas, já foram traduzidos para 21 idiomas e tiveram 2 milhões de exemplares vendidos. 'Minha aposta é que os brasileiros têm dificuldade de aceitar que era homossexual esse herói tão audacioso da história do país', provoca ele. Desde criança, o mineiro se mostrava com hábitos distintos dos observados em garotos de sua idade. Enquanto seus dois irmãos homens tinham costumes como brigar sem camisa em provas que pretendiam atestar sua virilidade, Dumont preferia bordar, fabricar pequenos balões de ar e, principalmente, ler. Seu escritor predileto era o francês Júlio Verne, de clássicos como A Volta ao Mundo em 80 Dias e Vinte Mil Léguas Submarinas - narrativas fictícias que, quando criança, Dumont julgava verdadeiras. Ele ainda admirava o trabalho de cientistas como o grego Arquitas de Tarento (428 a.C.-347 a.C.), inventor de uma pomba mecânica, o italiano Leonardo Da Vinci (1452-1519), que desenhou hipotéticas máquinas voadoras, e o brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724) - que em 1709 criou o balão."


A oportunidade de começar a construir as próprias aeronaves surgiu em Paris, para onde Dumont se mudou em 1892, após seu pai, adoecido, ter lhe adiantado parte da herança. Lá, ele fez contato com baloeiros, como Albert Chapin, que viria a se tornar mecânico de seus inventos. Nos salões parisienses, era comum membros da elite realizarem apostas audaciosas. Numa delas, o magnata do petróleo Émile Deutsch de La Meurthe, com o intuito de incentivar o desenvolvimento de motores a gasolina, instruiu a premiação de 100 000 francos (o equivalente a 500 000 dólares hoje) ao aeronauta que circundasse a Torre Eiffel. Por quê? No período, já se voava em balões e planadores, mais ainda não se sabia como controlá-los. Após tentativas com cinco dispositivos - incluindo o dirigível nº 5, cujo voo culminou num acidente que quase lhe tirou a vida - Dumont cumpriu a missão em 1901. Não sem dificuldades, como relataria numa carta a colegas: 'O motor (...) ameaçou parar (...)  com o risco de desviar o rumo, abandonei por segundos o leme a fim de concentrar a atenção na maneta'. Logo depois da proeza, já declarara: 'No ar, não havia tempo para ter medo'."


"O feito virou notícia em todo o mundo, de revistas francesas a jornais americanos, elevando o mineiro ao patamar de celebridade global. Consagração que ganharia força cinco anos depois, em 1906, quando Dumont optou por encarar outras duas apostas, promovidas por filantropos, que premiariam quem conseguisse decolar, voar, primeiramente, 25 metros e, então, outros 100 metros, e, enfim, pousar uma 'aeronave mais pesada que o ar' - era contra as regras valer-se da força do vento ou de catapultas para sair do chão. Foi ai que, com seu 14 Bis, o brasileiro cumpriu ambos os desafios, em exibições públicas nos arredores de Paris. A começar, em 23 de outubro, com um voo de 60 metros. Depois, saiu vitorioso do segundo desafio, ao percorrer 220 metros, em 12 de dezembro."


"Não por acaso, Santos Dumont foi o personagem-chave da cerimônia de abertura da Olimpíada do Rio. Na festa, simulou-se a imagem do 14 Bis saindo do Maracanã é sobrevoando a cidade. A homenagem guardou semelhança com a presença do personagem James Bond - ora encarnado pelo ator Daniel Craig, ora por um dublê - na cerimônia dos Jogos de 2012, na Inglaterra: nas duas ocasiões, a ideia foi levar para o mundo um símbolo nacional. A versão digitalizada de Dumont numa festa mundial enervou americanos, que reacenderam o velhíssimo debate acerca de quem teria inventado o avião. Um apresentador da rede televisiva NBC, por exemplo, questionou: 'Se a gente perguntar quem inventou o avião, o que você vai dizer?'. Ao que repórteres americanos responderam: 'Os Wright!'.
Mas, afinal, quem é o dono do título? O físico carioca Henrique Lins de Barros, biógrafo de Dumont e autor de quatro livros sobre o tema, pondera: 'A verdade é que há um pai. A aeronave foi criada a partir do esforço conjunto de cientistas de diversas nacionalidades. Agora, por critérios científicos que foram estabelecidos, se há um título, ele deveria ser dado a Dumont'. Não se trata de ufanismo, Os irmãos Orville e Wilbur Wright dizem ter voado antes, em 1903. Contudo, as únicas testemunhas foram uma irmã deles e seus funcionários. Depois, a dupla se recusou a repetir o feito para uma plateia - mesmo quando o Aeroclube da França, então órgão mais prestigiado do ramo, lhe ofereceu a quantia de 50 000 francos (250 000 dólares atuais)."


"Para além disso, vê-se no projeto dos Wright que sua máquina, dotada de motor de 12 cavalos (diante dos 50 do 14 Bis), não poderia decolar sozinha; logo, não atendia a um dos critérios para determinar o que se poderia chamar de uma 'aeronave mais pesada que o ar'. No primeiro voo dos americanos, eles mesmos admitiram que usaram o impulso de um vento de 40 quilômetros por hora para levar o equipamento ao ar. E, numa proposta de venda do aparelho para o Aeroclube da França, pressupunha-se a necessidade do uso de uma catapulta, ou de uma forte ventania, para que ele saísse do chão".


"Na prática, a versão americana nada mais era que um planador estilizado', diz Lins de Barros. Seguindo os critérios dos americanos patriotas - de que seria válido não haver decolagem nem testemunhas qualificadas (obrigação em qualquer experimento científico que se preze) -, nem mesmo os irmãos poderiam ser considerados os inventores do avião. Tampouco Dumont. A honra deveria ser concedida ao francês Clément Ader (1841-1925), que além de ter cunhado o termo 'avião', alegava que já no século XIX fizera experimentos secretos com máquinas do gênero, para militares de seus pais. Entretanto, não se sabe se as criações de Ader decolaram sozinhas, tinham estabilidade de voo etc. 'Na prática, todos esses nomes podem ser considerados, em somatória, como fundadores da ciência de voar', afirma o holandês Arthur Japin. Nesse quesito, estava certo o ex-presidente americano Bill Clinton. Em visita ao Brasil em 1997, ocupando o posto máximo dos EUA, o democrata assumiu Dumont como 'um dos pais da aviação'. Sim, 'um dos'. Assim como os Wright também seriam 'uns dos pais'."


"O nome de Dumont ainda perdeu força ao longo do tempo por ele não ser um bom divulgador de seus feitos, como os Wright, por não ter sido valorizado pelos próprios brasileiros e em virtude de o governo ditatorial de Getúlio Vargas haver tentado ocultar muito de sua biografia', completa Japin. Isso porque, na morte do herói nacional, em 1932, Getúlio procurou esconder um, digamos, detalhe: o aviador se suicidou, em um hotel no Guarujá (SP), enforcando-se com uma gravata. O governo empenhava-se em colar a versão de que ele teria sofrido um infarto, para usar a imagem de Dumont como propaganda federal. Admitir o suicídio seria ruim, do ponto de vista institucional. Com sintomas de esclerose múltipla e de outros distúrbios, o inventor teria entrado em depressão ao ver sua criação ser utilizada para fins militares durante a Revolução de 32, na qual o Exército massacrava os separatistas paulistas com bombardeios. A verdade veio à tona só anos depois, graças a um fato curioso: por conta própria, em movimento anti-Getúlio, o legista responsável pela autópsia extraiu o coração saudável do aviador como prova de que ele não fora vítima de infarto. Santos Dumont, um gênio que muitas vezes não recebe os devidos méritos nem em seu próprio país, viveu e morreu em razão de seu invento."


A matéria acima foi retirada da revista VEJA - Edição 2501 - Ano 49 - nº 43, págs. 94, 95, 96, 97, 98, 99 e 100. 26 de outubro de 2016. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e a Editora Abril.


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