CLÁUDIA COSTIN DIZ "O RISCO DE DOUTRINAÇÃO SEMPRE EXISTIU"


"Cláudia Costin Educadora e pesquisadora"


Por: André Vargas

"As deficiências, os atrasos e as limitações do nosso sistema educacional são as obsessões profissionais de Cláudia Costin, atual diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ex-ministra do governo de Fernando Henrique Cardoso, ex-dirigente de ONG e ex-diretora global de Educação do Banco Mundial que lecionou no mestrado da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ela percorre o mundo conhecendo soluções para melhorar o desempenho escolar de crianças e jovens brasileiros. Para Costin, é preciso melhorar a formação dos professores, garantir oportunidades iguais para os estudantes e preparar as escolas para o século XXI, em vez de ficar se preocupando com temas já deixados para trás por outros países, como o debate sobre cotas, sobre educação sexual e sobre os métodos do educador Paulo Freire. Sobre a briga ideológica pelos corações e mentes dos alunos, ela é categórica: "É mais efetivo ensinar a pensar".


André Vargas (ISTOÉ): "A educação está no centro do atual embate ideológico no Brasil. O que aconteceu?"
Cláudia Costin: "A ideologização da educação tem a ver, em muitos casos, com o limitação repertório cultural dos professores. Logo, fica mais fácil decorar e reproduzir uma visão de mundo como soluções simplificadoras. Isso ocorre muito em História e em Geografia. Sem contar que, quando o professor se sente inseguro, é natural que recorra ao material didático. O que foi preparado para auxiliá-lo não pode servir de único roteiro de aula."

André Vargas (ISTOÉ): "Mas há doutrinação?"
Cláudia Costin: "Não está errado dizer que sim. O que não é certo é afirmar que começou agora. Desde que existem escolas há esta possibilidade, seja por doutrinação religiosa ou doutrinação política. Não é um fenômeno novo, mas é algo que demanda ação. Desde que isso não signifique colocar fiscais em cada sala ou mandar os alunos filmar as aulas."


André Vargas (ISTOÉ): "O que o Brasil perde com o projeto Escola Sem Partido?"
Cláudia Costin: "Perderemos respeitabilidade e reconhecimento. Essa questão só se resolverá com trabalho colaborativo dos professores. Quem vai fiscalizar as aulas? Os vereadores? Ou aquela professora de Santa Catarina que foi eleita deputada e que entrou em uma sala de aula com uma camiseta do Bolsonaro pedindo para que os alunos denunciasse a doutrinação? Será que ela é boa julgadora dos filmetes que serão feitos pelos alunos? Só se resolve o problema mudando a cultura, com educadores analisando o processo de aula e ensinando a pensar. Se eu sou de direita ou esquerda e quero formar quem pense parecido, é muito mais efetivo ensiná-lo a raciocinar de modo autônomo. Se o aluno apenas decorar o que cai na prova, amanhã ele será fácil de algum líder massas que até pode ser contrário ao que prego."

André Vargas (ISTOÉ): "Por que o educador Paulo Freire é tão vilipendiado?"
Cláudia Costin: "Ele é respeitadíssimo no mundo todo. Em Cingapura, um aluno comentou comigo que o sistema de educação local é um dos melhores do mundo, também lembrando que a educação de lá ainda é muito rígida. Eles não produziram um pensador como ele. Fiquei emocionada. Aqui, criticam Paulo Freire pelas posições políticas que ele tinha no contexto dos anos 60. Ele começou com alfabetização quando as desigualdades eram muito maiores. Não acho que ele seja culpado de nenhum dos nossos problemas educacionais. O nosso erro vem, em parte, dos anos 40, quando optamos por investir em universidades públicas na ilusão de que formaríamos uma elite iluminada para depois, eventualmente, investirmos na educação básica. Isso sedimentou a desigualdade e tornou nossas elites muito ciosas de seus privilégios."

André Vargas (ISTOÉ): "As políticas de cotas devem ser revistas?"
Cláudia Costin: "Eu as defendo, porém acredito que devam valer para sempre. A que mais me agrada é a da Universidade de São Paulo, que se beneficiou de erros e acertos do passado. Eles colocaram cotas para alunos de escola pública e, dentro dela, as cotas raciais. Faz sentido. Pesquisas sobre cotistas mostram que eles têm um desempenho ligeiramente superior aos demais quando recebem algum incentivo didático, como aulas de reforço."

André Vargas (ISTOÉ): "A educação sexual faz parte do ensino público desde a ditadura. De onde vêm as críticas atuais?"
Cláudia Costin: "Algumas visões religiosas afirmam que isso deveria ser papel da família. Porém, é preciso lembrar que muitos dos pais que agora estão reclamando não completaram sequer o ensino fundamental. Ou seja, não tiveram essas lições. Percebo isso até quando dou palestras para secretários municipais de educação. No imaginário de muitos deles, as aulas sobre respeito à orientação sexual de outras pessoas poderiam induzir os filhos a virarem gays. Não é o caso."

André Vargas (ISTOÉ): "É função dos professores explicar aos pais que a educação sexual reduz os riscos de gravidez na adolescência, de doenças e de abusos?"
Cláudia Costin: "Vi gente que defende educação baseada em evidência científica sendo contra a educação sexual. Nos países desenvolvidos, todos têm educação sexual. Para que revindicar a roda? Temos que educar para a autonomia, o trabalho, as relações sociais e uma vida afetiva saudável e plena, incluindo a vida sexual."

André Vargas (ISTOÉ): "Por que os índices de educação no Brasil avançam tão lentamente?"
Cláudia Costin: "Temos motivos históricos, mas que não justificam tudo. O Brasil foi um dos últimos países americanos a universalizar o acesso ao ensino fundamental. Se considerarmos só a educação primária, na década de 1930 tínhamos 21,5% das crianças na escola. Estávamos quase empatados com a Coreia [então ainda não dividida em dois países],  que tinha 22%. No final década de 1960, porém, o Brasil tinha só 40% de matriculados, enquanto a Coreia do Sul já havia universalizado o acesso. Na década de 1980, mesmo com toda a urbanização ocorrida nas décadas anteriores, tínhamos 60% das crianças nas escolas. É daí que vem nosso atraso. No ano 2000, chegamos a uma escolaridade média de 4,9 anos. Hoje, temos 10,2 anos. Houve um avanço. Um estudo do Naercio Menezes Filho, pesquisador do Insper, apontou que 68% do sucesso escolar de uma criança depende do grau de escolaridade dos pais. Isso explica os resultados da Prova Brasil, a avaliação escolar em Português e Matemática do Ministério da Educação. O desempenho médio do 5º ano do ensino fundamental tem evoluído a cada edição desde 2005. O problema é que estamos muito lentos no 9º ano e, no ensino médio, estagnamos."


André Vargas (ISTOÉ): "Os professores são realmente desvalorizados?"
Cláudia Costin: "Duas questões surgiram a partir de 1997, quando concluímos a universalização do ensino fundamental 1. A profissão começou a perder prestígio por causa dos salários, que hoje estão 50% abaixo das carreiras que exigem o mesmo nível de estudo. A seguir, as mulheres começaram a encontrar novas oportunidades de emprego. É importante lembrar que, até a década de 1970, as principais opções de trabalho feminino eram a enfermagem e o magistério. No início de novembro, saiu um relatório de Varkey Foundation, com sede em Londres, sobre o status social de professores em 35 países. O Brasil ficou em último lugar. Um dos detalhes é que, em nosso País, poucos pais recomendam aos filhos ser professor. Para completar, o curso não prepara para inclusão, alfabetização e pedagogias para diferentes faixas etárias. Outro dado é que outra parte significativa dos professores de escolas públicas, onde estão 81,7% das crianças e jovens, estão submetidos a contratos precários e fragmentados, de 10 e 16 horas semanais. Isso obriga o professor a ter outra profissão ou atuar em escolas diferentes".

André Vargas (ISTOÉ): "A formação de nossos professores é muito deficiente?"
Cláudia Costin: "Eles precisariam pisar na escola desde o início do curso. Em média, infelizmente, um futuro professor de matemática estuda 3 anos e meio a matéria e apenas meio ano de história da educação, filosofia da educação, sociologia da educação e psicologia da educação. As turmas dessas disciplinas são de 70 pessoas, com futuros colegas de Educação Física, Ciências e Letras, todos misturados. Os futuros professores também fazem estágios obrigatórios que muitas vezes são meramente ritualísticos. No Rio, encontrei uma estagiária trabalhando na secretaria. Isso conta, mas não pode. Se na faculdade de medicina o aluno entra no hospital universitário desde o início, por que não nos outros cursos? Se pegarmos os 30 melhores países do PISA, todos têm uma base nacional comum curricular. No Brasil, só temos na educação infantil e no ensino fundamental. Daí o Enem e os vestibulares estipulam o que o aluno deve aprender. Só que, com treze disciplinas para uma média de 4 horas diárias diárias, as chances de se aprender algo em profundidade ficam limitadas. Não é à toa que os professores universitários se queixam tanto do preparo dos alunos que chegam."


André Vargas (ISTOÉ): "Podemos almejar um desempenho como os de Cingapura ou da Coreia do Sul?"
Cláudia Costin: "Vivemos em um país enorme, o que nos traz uma série de dificuldades. Mas é importante notar que a China, que não tem uma educação de qualidade no país todo, conseguiu criar um dos melhores sistemas de ensino do mundo. O governo chinês investiu muito nas megacidades, em especial Xangai, que tem 23 milhões de habitantes. No Brasil, um dos maiores problemas é a desigualdade social transformada em desigualdade educacional. É algo cruel, pois a educação embute a promessa de que vamos gerar igualdade de oportunidades. No último PISA [sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos], o Brasil ficou em 66º em Matemática, 63º em Ciências e 59º em em leitura. James Heckman, Nobel de Economia em 2000, fala da importância da atenção com a primeira infância para revelar as diferenças de origem social no desempenho escolar. A cobertura de creches no Brasil é de 33%. Nas regiões mais carentes, contudo, o índice é de apenas 14%."

André Vargas (ISTOÉ): "O que o Brasil precisa fazer para obter avanços mais rápidos no desempenho escolar de nossas crianças e jovens?"
Cláudia Costin: "Temos três tarefas pela frente. A primeira é melhorar a qualidade do ensino, desenvolvendo excelência nas escolas. A seguir, garantir a equidade. A terceira é preparar esses jovens para o século XXI, pois sequer concluímos a tarefa de criar uma boa escola no século XX. Temos muitas pendências justamente em um momento em que a inteligência artificial substitui o trabalho humano até em tarefas que exigem competências cognitivas. Equilibrar essa demanda será o grande desafio para o Brasil, mas não é algo impossível."


CONHECIMENTO CEREBRAL ENTREVISTA foi retirado da revista ISTOÉ - nº 2554, págs. 8, 9 e 10. 05 de dezembro de 2018. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista ISTOÉ e à Editora Três.


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