GUIDO LEVI EM "REVOLTA DA VACINA"


"Há 114 anos, até Rui Barbosa se contrapôs à obrigatória vacinação contra a varíola. Mas a resistência limitava-se à imposição legal, e não ao medicamento, hoje considerado pelos cientistas o maior presente da medicina à humanidade"


Por: Cristina Almeida

"Enquanto os médicos ainda comemoram o histórico evento da primeira vacina contra o terceiro câncer mais frequente na população feminina no Brasil, o de colo de útero (ou cervical), os movimentos antivacinas avançam. Um estudo premiado no Congresso Mineiro de Pediatria de 2018, realizado por estudantes de medicina da Universidade de Lavras (MG), concluiu que uma das responsáveis por essa resistência é a internet, que facilita a disseminação de informações quase nunca confiáveis.
Para o médico Guido Levi, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), que decidiu ser médico aos quatro anos de idade, especializou-se em doenças infecciosas e dedicou sua vida à imunização. Isso se deve ao fato de o ser humano ser muito influenciável. "Existe todo tipo de fanatismo. Ser antivacina é um deles", diz. E evoca a sabedoria rabínica para tentar explicar o que contraria o bom senso. "Um dia, ouvi de um rabino que esse tipo de comportamento se define em um verso - to belong [do inglês, pertencer]. Todo mundo quer pertencer a algo, sentir-se parte de alguma coisas". 
Levi ostenta em sua linha do tempo profissional um feito da maior importância: a redação (em parceria com Antonio Ozório Lemes de Barros) de um código de ética e moral para a prática clínica da AIDS, no momento histórico (década de 1980) em que esta enfermidade assombrava até os médicos. Validado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), o documento foi o primeiro no mundo. "O que eu queria era contribuir para a melhora da saúde dos brasileiros", fala o médico, que também é membro do Comitê Técnico de Assessores em Imunizações (CTAI) do Ministério da Saúde (MS) e do Comitê Permanente Assessor em Imunizações da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, Levi deu a seguinte entrevista exclusiva para a Leituras da História."


Leituras da História: "Este ano contamos 114 anos da Revolta da Vacina. O que mudou, desde então, na saúde pública do nosso País?"
Guido Levi: "Em 1904, aqui no Brasil, a questão estava mais relacionada à obrigatoriedade de tomar a vacina, e não ao medicamento em si. A Inglaterra já tinha passado por uma situação semelhante onde os cidadãos ingleses não aceitaram a imposição da medida. O governo, então, recuou, e a adesão às campanhas aumentou. Foi o que os brasileiros fizeram também. Seja lá como aqui, trata-se de uma visão mais política do que científica. Naquela época, o Brasil passava por uma epidemia de febre amarela e sofria com a varíola, enfermidade que impactava na alta mortalidade do País. Quando caiu a imposição legal, aos poucos, as pessoas foram percebendo que a vacina estava mudando esse quadro e acabaram se vacinando. A partir de 1973 veio a grande mudança: o estabelecimento do Programa Nacional de Imunização (PNI). Dizia -se que as vacinas, por si só, aumentaram em cerca de 30 anos a expectativa de vida da população mundial em dois séculos. No Brasil, isso só aconteceu nas últimas quatro décadas e meia. O grande motor dessa melhora foram as vacinas."


Leituras da História: "É como essa estratégia foi colocada em prática?"
Guido Levi: "Naquele período, o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) fez uma pesquisa para descobrir quais teriam sido as dez intervenções de maior impacto na saúde pública americana no século XX. A vacina ficou em primeiro lugar. E foi isso o que aconteceu aqui, inicialmente com a disponibilidade de quatro bacinas - a da varíola [em primeiro momento; a doença foi erradicada em 1972], a poliomielite (paralisia infantil), a BCG (tuberculose) e a tríplice (sarampo, caxumba e rubéola). A partir daí, o que vimos foi uma mudança radical na nossa saúde pública."

Leituras da História: "Como era a realidade das doenças infecciosas naquela época?"
Guido Levi: "Eu testemunhei, no Emílio Ribas, as enfermarias lotadas de pessoas com varíola morrendo como passarinhos e, após a vacinação em massa, a doença sumiu. O sarampo era a doença infecciosa que mais matava crianças no País até a década de 1980, e, da mesma forma, os hospitais viviam lotados e contavam uma alta mortalidade infantil. Os jovens de hoje nunca viram um quadro como esses, graças às vacinas. Quanto à poliomielite, não era raro um familiar ou um vizinho que tivesse uma perna mecânica ou uma bengala, dadas as sequelas da doença. Mas esses eran os casos mais leves! Os graves levaram à paralisia dos músculos respiratórios. Assim, os hospitais eram equipados com um aparelho que se chamava pulmão de aço [que ajudava as crianças a respirarem], mas do qual elas não sabiam mais. Nós, médicos, ficávamos tão chocados, que não conseguíamos nem falar diante do espetáculo dramático. No final, as crianças, intuindo nosso desconforto, logo puxavam conversa. Hoje, esses aparelhos desapareceram. Todos foram guardados. Quanto à febre amarela, como se trata de uma doença cíclica, não existem dados estatísticos seguros quanto ao passado, mas temos certeza de que, não fosse a vacina, o surto recente que tivemos teria sido muito maior do que vimos. Outra enfermidade que desapareceu foi a rubéola congênita, uma das mais frequentes causas de surdez, cegueira e malformações cardíacas, além do mal dos sete dias [o tétano neonatal], contraído durante o parto, com apenas um caso registrado no ano passado (2017)."


Leituras da História: "Diante desses fatos, por que existem tantos antivacinas?"
Guido Levi: "Quando falamos nos atuais antivacinas, temos de considerar que essas pessoas desprezam completamente a ciência e a história. Porque não é preciso ser um cientista para saber como era a saúde pública antes e como é agora, depois das vacinas.
É também não é preciso ser um historiador para conhecer todos os argumentos frontalmente contrários aos mitos e inverdades espalhados por esses grupos, que são, em parte, responsáveis pela queda nos índices de vacinação dos últimos anos. Mas houve também o reaparecimento de doenças consideradas controladas. Não podemos dizer que sumiram completamente porque em um mundo de viagens aéreas rápidas como o de hoje, sempre estamos sujeitos ao reaparecimento de doenas, como ocorram quedas nos índices de imunização - o que aconteceu, de fato, com o sarampo e, parcialmente, com a coqueluche. A mídia eletrônica e suas informações falsas e distorcidas [muito fáceis de refutar] colaboram com o quadro de desconfiança. Eu comparo essas notícias às calúnias. Calúnia pega. Depois dela, você até pode comprovar a verdade e a sua inocência. Mas limpar a honra de uma pessoa leva muito tempo. Se é que se consegue. O mesmo ocorre com as vacinas."

Leituras da História: "Com tantos problemas econômicos e políticos, a ameaça do Aedes aegypti e personalidades advogando o não se vacinar, a sensação é a de que estamos à beira de uma revolta."
Guido Levi: "Penso que esse quadro é uma revolta, ela é restrita em termos de seguidores. Um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade De São Paulo (USP), investigou quem eram os integrantes dos grupos que recusavam as vacinas. Descobriu -se que se tratava da classe A, isto é, pessoas economicamente mais favorecidas, com maior escolaridade. Nas demais classes não há esse posicionamento extremista, talvez porque o benefício da vacinação pode ser mais bem observado."


Leituras da História: "Contudo, observamos esse fenômeno em todo o mundo e mesmo nas nações onde há maior igualdade econômica..."
Guido Levi: "Existe todo o tipo de fanatismo, até mesmo entre povos mais cultos. Essa condição não foi capaz de evitar movimentos como o nazismo, o fascismo. Há grupos religiosos que consideram qualquer tipo de assistência médica é contrária à vontade divina. Uma vacina, então, contradiz a vontade de Deus. Há um caso curioso de um surto de sarampo em Illinois, nos Estados Unidos, onde havia muitas escolas religiosas - eram os Christian Scientists. As crianças não podiam ter assistência, nem mesmo uma ficha médica. Então houve um surto de sarampo e a filha do reitor dessas escolas foi infectada. Ela faleceu sem cuidados, e seu irmão também contraiu a doença. Ainda assim o professor rejeitou os cuidados médicos. Isso não é fanatismo? O mundo tem muito a aprender para combater essas manifestações. É o que vemos até no campo eleitoral. O ser humano é influenciável. Gosto de citar o que ouvi um dia de um rabino. Isso tudo se resume em uma palavra - to belong (pertencer, em inglês). As pessoas querem saber que pertencem, fazem parte de algo. E, às vezes, este é o resultado."

Leituras da História: "Se os índices de Imunização continuarem a cair, corremos o risco de ela vir a ser obrigatória?"
Guido Levi: "A obrigatoriedade é real em muitos lugares do mundo. Em alguns deles, a vacinação básica é obrigatória. Nos Estados Unidos, há quatro estados onde você não pode matricular seus filhos na escola se eles não forem vacinados. Outros países exigem a caderneta de vacinação na hora da matrícula, mas não impedem a criança de frequentar a escola se ela não estiver em dia. Apenas que, se houver alguma situação de risco, ela pode ser afastada da escola, como acontece na Austrália. Alguns países consideram a obrigatoriedade prejudicial. É o caso do Reino Unido. No Brasil estamos discutindo muito isso agora, porque a vacinação faz parte da nossa Constituição, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que declaram ser dever dos pais ou responsáveis vacinar as crianças sob sua responsabilidade. Embora haja esta previsão legal, nunca houve o estabelecimento de penalidade pelo seu descumprimento. Essa lei não pegou. Esse assunto voltou a ser falado após os últimos surtos e, recentemente, o PNI e as Sociedades Paulista de Pediatria e Brasileira de Imunizações (SPSP e SBIm) estão preparando um manifesto relacionado ao assunto. Mas há correntes que entendem que a vacinação deve ser obrigatória, e ponto final. Por outro lado, há os que entendem que antes de recusar uma matrícula escolar e penalizar os responsáveis, é importante a informação. Pedir a carteira na matrícula é uma medida correta. No caso de ela estar atrasada ou ser inexistente, seria desejável chamar os pais para que eles pudessem ser conscientizados da importância dessa iniciativa e da facilidade de adequação. Com essa medida, a maioria deles iria vacinar seus filhos. Devemos começar pela informação."


Leituras da História: "Na década de q980, o presidente Ronald Reagan promulgou uma lei chamada Vaccine Injury Act [Lei dos danos decorrentes da vacina]. A norma visava proteger pessoas que tiveram algum tipo de reação. Por que isso aconteceu?"
Guido Levi: "Naquela época, os Estados Unidos enfrentavam alguns fenômenos, como a contaminação de um lote de vacina Sabin, além de efeitos colaterais importantes em uma vacina de sarampo. Isso levou as pessoas envolvidas a processarem a indústria farmacêutica e também os aplicadores das vacinas. As penalidades a elas impostas eram tão grandes, que desestimularam a fabricação do medicamento. Foi assim que o governo americano decidiu criar um sistema de comunicação de eventos adversos. Quando se comprovava a relação de um dano ao recebimento de alguma vacina, havia uma tabela indicando a correspondente indenização, que até hoje é atualizada (tanto a parte médica, como a econômica). Se não houvesse esse tipo de controle, não teríamos as vacinas que temos hoje. O dinheiro para esse fundo vem dos impostos das vacinas fabricadas. No Brasil ainda não se discute sobre isso."



Leituras da História: "Muitas pessoas perguntam por que temos tantas vacinas hoje. Isso quer dizer que temos mais doenças do que no passado?"
Guido Levi: "Isso quer dizer que temos novas formas de proteção da saúde. As doenças sempre existiram e existem. O que houve, foi um progresso, embora ele tenha ocorrido lentamente. No primeiro programa de imunizações nós tínhamos quatro vacinas, hoje temos 14 só para crianças - no total são 19. Por acaso não existia caxumba, rubéola, hepatite? O que não havia eram formas de prevenção. Fala-se pouco sobre o rotavírus, por exemplo, mas a vacina correspondente acabou com o volume de internações de crianças com diarreia em todo o mundo. Para a saúde pública, isso é fenomenal. Ainda estamos festejando a primeira vacina contra o câncer (HPV), há cinco anos disponível e já acessível à população. Mas o câncer de colo de útero, de ânus, de garganta sempre existiram."

Leituras da História: "Na sua opinião, o que mais influenciou o decréscimo da mortalidade da população nos últimos tempos: a melhora das condições de vida (higiene e alimentação) ou o acesso às vacinas?"
Guido Levi: "É claro que higiene e nutrição colaboraram de modo fantástico. Quando se comparou os benefícios da água potável e o das vacinas para a mortalidade infantil em todo o mundo, as duas medidas quase se igualaram. Mas se observarmos as estatísticas de quantos lares têm sistema de esgoto e água encanada, veremos que há uma carência enorme. O número de casas que possuem sistema de esgoto no Brasil representa 50%. As vacinas justamente protegem aqueles que não têm acesso a esses benefícios. A boa nutrição é importante? Claro que é! Mas a poliomielite, por exemplo, afetava igualmente crianças em situação mais ou menos favorecida. O sarampo ser mais grave em um paciente bem nutrido, mas mesmo nesse grupo a doença pode ser grave. Nutrição e higiene são importantes coadjuvantes e integram o sistema de proteção da saúde da população. Não basta estar bem nutrido para escapar do risco que uma doença pode produzir."


Leituras da História: "Baseado nas experiências do passado, se mudasse mudar alguma coisa nas estratégias de imunização, o que seria?"
Guido Levi: "Penso que melhoraria a divulgação sobre a importância da imunização. Porque temos um PNI que disponibiliza praticamente todas as vacinas importantes para a população. Algumas delas só existem na rede privada porque ainda são embrionárias em termos de público, ou porque são mais purificadas do que as que temos na rede pública [como a de coqueluche] - estas são um luxo para quem pode se permitir! Um dia, se tivermos verba maior ainda do que temos na saúde pública, é possível que todas essas vacinas estejam disponíveis nas melhores formulações. Contudo, as que temos são fundamentais. Mas precisamos continuar trabalhando na divulgação. Não podemos achar que o que conquistamos foi o suficiente. As vacinas são o maior presente que a medicina ofereceu para a humanidade, e não podemos retroceder. Quem conhece a importância da vacina tem de fazer seu trabalho, seja médicos ou não." 

Leituras da História: "O que podemos esperar para o futuro?"
Guido Levi: "Nós estamos em uma guerra e espero que ela seja ganha pela ciência e pelas informações corretas. Ainda não conseguimos combater conteúdos de baixa qualidade em nossas mídias e isso afeta vários segmentos. Infelizmente ainda não estamos procurando os mecanismos adequados para isso. No futuro, temos de ter alguma maneira de combater as fake news". LH


CONHECIMENTO CEREBRAL ENTREVISTA foi retirado da revista LEITURAS NA HISTÓRIA - Edição 120 - Ano 2018, págs. 10, 11, 12, 13 e 14. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista LEITURAS NA HISTÓRIA.


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