CONHECIMENTO CEREBRAL DESTACA VIOLÊNCIA!


"MUITOS DEDOS NO GATILHO"
"Não foi obra ao acaso. Os 80 tiros contra uma família negra do Rio de Janeiro são o resultado de uma política de segurança voltada para o confronto e incentivadora da violência policial"


Por: Rodrigo Martins

"Em uma cidade acuada pelo tráfico e pelas milícias, a técnica de enfermagem Luciana dos Santos Nogueira sentiu-se aliviada quando o marido decidiu fazer o trajeto "mais seguro" naquele ensolarado domingo, 7 de abril. Animada, a família dirigia-se a um chá de bebê, e deu preferência as ruas próximas da Vila Militar de Deodoro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. "Eu falei: ali é calmo, é nossa área. E eu vi o quartel. Tava protegida", relembrou a mulher no dia seguinte, ao chegar no Instituto Médico Legal para liberar o corpo do marido.
A família caiu em uma emboscada. Sem emitir qualquer alerta ou ordem de parada, segundo o relato de testemunhas, soldados de uma guarnição do Exército simplesmente abriram fogo contra o "veículo suspeito", um modesto Ford Ka branco a transportar uma criança de 7 anos, seu pai, sua mãe, seu avô e um amiga.
Foram mais de 80 tiros de fuzil. Atingido por três disparos, Evaldo Rosa dos Santos tombou morto sobre o volante. Ao seu lado, o sogro Sérgio Araújo, padrasto de Luciana, também foi atingido, mas sobreviveu. Nenhum dos passageiros no banco traseiro do automóvel foram atingidos (felizmente, os soldados eram ruins de mira). Sob artilharia pesada, as duas mulheres e o menino rastejaram para fora. Um catador de material reciclável tentou socorrer as vítimas e acabou baleado. Está hospitalizado, em estado grave. 
"Os vizinhos começaram a socorrer, mas eles continuaram atirando e vieram com armas em punho. Eu botei a mão na cabeça, pedi socorro, disse para eles que era meu marido, mas não fizeram nada, ficaram de deboche", conta Luciana, a exigir justiça pela morte de Evaldo, seu companheiro por 27 anos. Além de músico, ele trabalhava como segurança de uma creche. Mas a tropa não perdeu tempo verificando antecedentes dos suspeitos de pele negra. "Meu esposo morreu como um bandido".
A Polícia Civil acredita que os soldados confundiram o Ford Ka com outro veículo branco que havia sido roubado na região horas antes. "Mas naquele carro havia uma família, não foi encontrada nenhuma arma ali", revelou Leonardo Salgado, da Delegacia de Homicídios. O Exército mudou o relato sobre a execução ao menos quatro vezes. Na primeira nota sobre o caso, o Comando Militar do Leste disse que a guarnição havia reagido à "injusta agressão" de dois criminosos. Depois, acrescentou que os fatos ainda estavam sob apuração. Em um terceiro comunicado, anunciou a tomada de depoimentos. Somente na manhã do dia seguinte admitiu que haviam "inconsistências" nos relatos. Dez dos 12 militares envolvidos na ação foram presos. Um deles acabou solto na tarde de quinta-feira 10."



"Apesar de a Polícia Civil ter iniciado a investigação, o caso será repassado para uma auditoria militar. Desde 2017, quando Michel Temer sancionou a Lei n° 13.491, crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas passaram a ser investigados e julgados exclusivamente pela Justiça Militar, mesmo em casos de vítimas civis. A mudança ocorreu por pressão dos militares, que alegaram sentir-se "desprotegidos" pela legislação quando participavam de operações de Garantia da Lei e da Ordem. Embora o Rio não esteja mais sob intervenção federal e tampouco existia um decreto autorizando uma GLO, os soldados sentiram-se à vontade para fuzilar um carro de passeio porque, em tese, estavam no perímetro de segurança da Vila Militar, onde têm jurisdição.
"Era para este país estar pegando fogo hoje", desabafou o rapper Emicida no dia seguinte à execução, durante o programa Papo de Segunda, da GNT. "Oitenta tiros no carro de uma família que estava indo para uma chá de bebê. Um pai morreu na frente de um filho de 7 anos. O militar que atirou debochou quando a mulher desceu do carro. A gente é do país em que a segurança do mercado se sente livre para asfixiar um cara e não acontece nada. Isso é um soco no estômago, um tapa na cara do brasileiro. Para mostrar como o nosso Estado é genocida. E a gente precisa, urgentemente, fazer alguma coisa"."


"Emicida tem razão. Em qualquer lugar do mundo haveria revolta, no mínimo ruidosos protestos de rua, caso soldados atirassem contra compatriotas desarmados como se estivessem diante de combatentes do exército inimigo. Qualquer lugar, menos o Brasil, onde as autoridades nem sequer sentiram necessidade de prestar contas à população.
O presidente Jair Bolsonaro permaneceu em obsequioso silêncio. Encarregou o porta-voz do Palácio do Planalto, Otávio do Rêgo Barros, de dizer que "confia na justiça militar". Em entrevista a José Luiz Datena, da Band, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, classificou a ação do Exército como "lamentável", mas equivou-se da responsabilidade. "Vi que o Exército está investigando. Tem que apurar. Os fatos precisam ser esclarecidos". O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witsel, também lavou as mãos. "Não sou juiz da causa. Não estava no local. Não era a PM. Quem tem que avaliar os fatos é a administração militar. Não me cabe fazer juízo de valor"."


"O silêncio das autoridades é bastante revelador. O Exército fuzila o carro de uma família e não ouvimos uma declaração de repúdio do presidente da República, da ministra dos Direitos Humanos ou do ministro da Justiça. O Supremo, que costuma se manifestar por tudo, inclusive aquilo que não lhe compete, também se calou. O governador do Rio, então, recusou-se a emitir qualquer opinião. O recado é claro: a vida de um cidadão negro não tem importância alguma", lamenta o advogado Silvio Luiz de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama e professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie."


"Essas autoridades tentam, mas não conseguem esconder as suas digitais nessa tragédia. Desde de quando era apenas um histriônico parlamentar, Bolsonaro festeja operações policiais que resultam na morte de suspeitos. Recentemente, usou o Twitter para dar parabéns a policiais da Rota, tropa de elite da Polícia paulistana, por uma violenta ação contra a quadrilha de assaltantes em Guararema, na Grande São Paulo. "Onze bandidos foram mortos e nenhum inocente saiu ferido. Bom trabalho!", celebrou. Uma de suas promessas é ampliar o conceito de "exclusão de ilicitude", figura já existente no Código Penal e que isenta de punição quem pratica um crime em "legítima defesa" ou no "estrito cumprimento de dever legal". Durante a pré-campanha, ele próprio esclareceu o que realmente pretende. "Se alguns dizem que quero dar carta branca para o policial matar, respondo: 'Quero sim'."


"Ao apresentar o seu pacote "anticrime", Moro tratou de dar um verniz jurídico para essa obsessão de Bolsonaro. O projeto amplia as possibilidades de anistia, ao propor que um juiz possa reduzir a pena à metade ou mesmo "deixar de aplicá-la" se um policial matar por "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". A subjetividade é tão grande que, mesmo no episódio da família que teve o carro fuzilado, poderia argumentar-se que os soldados do Exército estavam tomados por "violenta emoção", alerta Leonardo Pinho, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos. "Bastaria os militares dizerem que havia perigosos bandidos em um carro muito parecido ou que viram o motorista mexer em algo que parecia ser uma arma. Pronto, está justificada a execução. O projeto de Moro apenas cria um instrumento jurídico para assegurar a impunidade dos agentes do Estado que matam civis"."


"Witsel, por sua vez, tem insistido na proposta de usar snipers, atiradores de elite, para abater suspeitos que estejam fortemente armados, mesmo que eles não estejam ameaçando alguém. "A polícia vai fazer o correto: mirar na cabecinha e...fogo. Para não ter erro", disse em novembro, antes mesmo de assumir o mandato. Em fevereiro, elogiou uma operação policial nos morros Fallet, Formigueiro e Prazeres, na Região de Santa Tereza, que deixou 15 corpos pelo caminho, alguns deles com claros sinais de execução. A "ação legítima", segundo o governador, é o mais letal ato da Polícia Militar no Rio desde 2007, quando uma incursão no Complexo do Alemão, na Zona Norte, resultou em 19 mortes.
Os protocolos das Nações Unidas recomendam o disparo da arma de fogo apenas quando necessário para legítima defesa própria ou de terceiros, contra uma ameaça iminente de morte ou de ferimentos graves. Não é o que acontece no Brasil, recordista mundial em mortes causadas pela polícia. Apenas em 2017, as forças de segurança mataram 5.159 "suspeitos", mais que o dobro das 2.212 causadas por policiais quatro anos antes, em 2013, segundo o 12° Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Em São Paulo, o início da gestão de João Doria, outro surfista da onda bolsonarista, ficou marcado pelo aumento da letalidade policial. De acordo com os dados divulgados pela Ouvidoria das Polícias, o número de mortes aumentou 5% no primeiro trimestre de 2019, quando comparado ao mesmo período do ano anterior. Em março, a alta foi de impressionantes 46%. "Solicitei ao governador a centralização, na Corregedoria da Polícia Militar, de todos os inquéritos relacionados a mortes decorrentes de intervenção policial", diz o ouvidor Benedito Mariano. "Atualmente, a Corregedoria investiga apenas 3% dos casos. Os demais 97% são apurados pelos batalhões de origem dos próprios policiais envolvidos na ocorrência, o que não é nem um pouco recomendável"."


"A exemplo de Bolsonaro, o governador paulista elogiou a violenta operação da Polícia Militar que resultou na morte de 11 suspeitos de integrar uma quadrilha de assaltantes de banco em Guararema. "Estão de parabéns os policiais que agiram e colocaram no cemitério mais dez bandidos", celebrou antes da confirmação da 11° morte. Doria prometeu ainda condecorar os policiais envolvidos na ação. O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos repudiou a iniciativa. Ao celebrar o morticínio, o tucano "nega as leis, que não permitem a pena de morte ou autorizam execuções sumárias, valorizando uma cultura de permanente violência", enfatiza o Condepe. Mariano, por sua vez, diz não comentar declarações do governador, mas não deixa de externar o seu pensamento: "Qualquer ocorrência com vítima não é uma boa ocorrência"."




"No quesito violência policial, o Rio de Janeiro ainda é imbatível. Em 2018, foram 1.584 mortes causadas por policiais ou militares, 36% a mais do que no ano anterior e recorde absoluto das últimas duas décadas, revelam dados do Instituto de Segurança Pública, órgão responsável pela compilação de estatísticas criminais do estado. A tendência de aumento da letalidade policial persiste, mesmo após o fim da intervenção federal.
"Na soma dos dois primeiros meses de 2019, verificamos um aumento de 17,8% no número de mortes por intervenção de agentes do Estado dm relação ao mesmo período do ano anterior", observa Isabel Lima, coordenadora da área de Violência Institucional e Segurança Pública da ONG Justiça Global. "Em grande medida, isso se deve à irresponsabilidade de autoridades com um discurso de desprezo aos direitos humanos e de legitimação da violência policial. A sociedade precisa estar em alerta para rejeitar falsas soluções. Essa política baseada na lógica do confronto só gera mais violência"."


"Primeira mulher negra a presidir a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, a deputada estadual Renata Souza, do PSOL, anunciou que entrará com uma representação ao Ministério Público do Rio uma investigação sobre o uso de snipers em operações policiais nas favelas."


"Este tipo de ação é bem representativo do racismo estrutural que temos no Brasil. A lógica é: se está na periferia e é negro, então é suspeito. Se é suspeito, a polícia pode abater. Você é culpado até que prove a inocência", lamenta. "Sou cria da (favela da) Maré. Lá, desenvolvemos técnicas de sobrevivência, como andar com carteira de trabalho no bolso para provar que não temos envolvimento com o tráfico ou não usar guarda-chuva preto, para que os policiais não confundam com fuzil. Escuto esse tipo de recomendação desde criança".
A deputada tem razão ao mencionar o componente racial da violência. Sete em cada dez vítimas de homicídio no Brasil são negras, jovens e pobres. Segundo o Atlas da Violência, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior àquele de não negros em 2016 (veja gráficos acima). Já o Fórum Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 boletins de ocorrência de mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016 e, ao descontar aqueles nos quais a informação de raça não estava disponível, identificou que 76,2% das vítimas da polícia eram negras.
"O Brasil é um país no qual a palavra 'ordem' é sinônimo de violência contra a população pobre e negra. Em nossa história, o autoritarismo sempre foi a regra, a democracia que é excepcional", observa Silvio de Almeida. "Temo que essa tragédia no Rio seja apenas um ensaio do que está por vir, com o agravamento dos problemas e das tensões sociais do País".
É preciso mesmo colocar as barbas de molho. O desemprego segue em alta, e atinge 12,7 milhões de trabalhadores. A pobreza também está em franca expansão. Segundo um recente relatório do Banco Mundial, 21% da população (43,5 milhões de habitantes) vivia com menos de 5,50 dólares por dia em 2017. Em três anos, 7,3 milhões de brasileiros juntaram-se ao panteão de desvalidos. Sem renda e sem emprego, é melhor esconder-se dos snipers..."

A matéria acima foi retirada da revista CARTA CAPITAL - Ano XIX - n° 1050. 17 de abril de 2019.


SUGESTÃO

Após a leitura, sugerimos que assista ao vídeo da reportagem sobre o fuzilamento da família no Rio de Janeiro, que acabou com a morte do músico Evaldo, e que deixou outro homem em estado grave. As imagens são do YouTube e o idioma é o português.


Neste outro vídeo, também do jornalismo do SBT, mostra a prisão dos 10 integrantes do Exército responsáveis pelo crime. As imagens são do YouTube e o idioma é o português.


Neste último vídeo, um debate com especialistas que discutem o aumento do número dos homicídios no Atlas da Violência de 2018. As imagens são do YouTube e o idioma é o português.


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