ANNICK COJEAN DIZ "ESTUPRO VIROU ARMA EM ZONAS DE CONFLITO"


Annick Cojean, repórter prestigiada do jornal francês Le Monde, dentre muito o que defende, tem um olhar diferente para as mulheres, que são oprimidas tanto pelos seus direitos como também, pela violência praticada contra a mulher, principalmente o estupro. Ela também é autora do livro O Harém de Kadafi, da qual denuncia as atrocidades cometida pelo ditador Muammar Kadafi, que manteve-se no poder da Líbia por mais de quarenta anos. Além disso, cita temas polêmicos e comenta sobre a guerra síria que tem causado a maré de refugiados indo para a Europa, inclusive a França. Annick Cojean é a entrevistada do Conhecimento Cerebral Entrevista Especial. A entrevista completa você vê a seguir.

Por: Camila Galvez 
camilagalvez@dgabc.com.br

"O abuso sexual de mulheres se tornou a principal arma de destruição em massa em áreas de conflito no mundo. A afirmação é da jornalista francesa Annick Cojean, que na semana passada realizou palestra na Aliança Francesa do Grande ABC, em Santo André.
Em entrevista ao Diário, Annick fala sobre a situação das mulheres no Oriente Médio e relembra a apuração para seu famoso livro O Harém de Kadafi, publicado em 2012 pela editora Verus e traduzido para mais de 20 idiomas. A obra denuncia a violência sexual praticada pelo ditador líbio Muammar Kadafi durante os mais de 40 anos em que esteve no poder. 'Kadafi era auxiliado pela cultura existente na Líbia e em outros países da região, na qual a mulher é dependente do pai, do irmão, do marido. A vítima que foi estuprada é considerada culpada pela família. É motivo de desonra. E se cala'.
Annick afirma ainda que o estupro também é usado como arma na Síria, o que tem motivado muitas famílias a deixarem determinadas regiões do país exatamente por causa disso. 'Há relatos de abusos coletivos, nos vilarejos, e ainda mulheres que são levadas para a prisão e estupradas. Mas muito pouco se fala sobre tudo isso'.
A profissional ainda se disse surpresa ao saber da polêmica envolvendo o tema da redação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) deste ano, que abordou a violência contra a mulher. 
Annick é repórter especial do jornal Le Monde, onde atua desde 1981. Ela também comanda programa de televisão, é jurada do prêmio Albert-Londres - que todos os anos desde 1933 premia o melhor repórter da imprensa escrita, feito que ela conquistou em 1996 -, além de já ter se envolvido em projetos jornalísticos de diversos veículos de informação franceses."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Como surgiu a ideia de trazer nas zonas de conflito pelo mundo ao centro de suas reportagens?"
Annick Cojean: "Tudo começou com minha curiosidade de saber como as mulheres se comportavam nestas situações. Fiz uma viagem para a Líbia porque já tinha visto que o papel feminino em momentos de revolução social na Tunísia e no Egito estavam bem forte. Mas a Líbia também passava por momento de transição e ninguém falava sobre as mulheres. Não se sabia se elas eram contra ou a favor do sistema do (ditador Muammar) Kadafi. O que vi é que o papel da mulher foi fundamental na revolução, inclusive algumas das manifestações contra o governo começaram com as mulheres. Percebi que elas estavam muito ativas, corajosas, necessárias e que assumiam vários riscos - o maior deles de serem estupradas. E nada disso se falava nos jornais."


Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Como foi para você, como mulher, entrar em contato com outras mulheres em situações tão desesperadoras, como é o caso de Soraya, sua personagem no livro O Harém de Kadafi?"
Annick Cojean: "Foi a primeira vez que entrei em contato com esse tipo de situação de horror. Havia uma mistura de sentimentos. Era muito triste, mas, ao mesmo tempo, revoltante. Ouvir as histórias dessas mulheres da Líbia trazia sensação de injustiça completa. Senti a necessidade e a urgência de relatar tudo isso. Kadafi usava o segredo de seu harém como arma, ninguém falava sobre o assunto. Ele mostrava as mulheres como se fossem suas protetoras, sua polícia, seu exército. Propagava governo aberto para a mulher, mas no subsolo de Bab al- Azizia mantinha escravas sexuais. Era pura hipocrisia."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Você enfrentou dificuldades na apuração de suas reportagens nos países onde passou pelo fato de ser mulher?"
Annick Cojean: "Não enfrentei dificuldades na Líbia porque tomava cuidado, era muito discreta. Morava em um hotel simples e pouco conhecido. O cuidado era maior com as fontes. Ninguém podia saber que eu tinha me encontrado com essas mulheres. Às vezes elas iam ao hotel onde eu estava à noite, assim não seriam vistas conversando comigo. Uma amiga que serviu de tradutora para mim na Líbia disse certa vez, quando nos questionaram em entrevista ao Parlamento Italiano se em algum momentos nos sentimos ameaçadas e com medo, que mantinha uma arma embaixo do assento do carro em todos os lugares que íamos. Ela nunca havia me contato, mas tomava a precaução. Quando apurava o livro (em 2011), era um momento de euforia logo depois da morte de Kadafi. Hoje em dia não poderia mais fazer o que fiz. Ainda recebo ameaças de morte por causa do que escrevi."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Na sua opinião, o que leva mulheres a se comportarem contra suas iguais, como no caso das que recrutavam jovens para o harém de Kadafi, conforme relato de Soraya?"
Annick Cojean: "É difícil saber. Elas me provocavam raiva. Tentei encontrar essas mulheres que ajudavam o Kadafi para colher seus testemunhos para o livro, mas não tive sucesso. Foi uma reação em que me disseram que uma delas estaria, no entanto, as pessoas tinham medo de falar sobre o assunto. Acredito que as mulheres têm sentimento natural de se ajudar, mas Kadafi era de alguma forma tão mau e manipulador que era difícil resistir. Não sei dizer como, mas elas eram seduzidas por ele, por medo ou por interesse também. Muitas delas acredito que por sobrevivência. O sistema da ditadura era muito fechado, havia diversas pressões, então, aceitar o que Kadafi fazia era uma forma de sobreviver. A personagem Mabruka, uma das que me causaram mais raiva, foi também a que mais me esforcei para encontrar, mas não consegui. Um dia alguém me disse que essa mulher estava viajando para Paris e falei imediatamente: 'Como assim? Ela tem de ser presa. É preciso fazer algo'. Mas fiquei sem qualquer resposta."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "A cultura dos países do Oriente Médio é muitas vezes utilizada como justificativa para comportamentos desse tipo. Até que ponto se trata de questão cultural ou crime?"
Annick Cojean: "Com certeza crime. Mas Kadafi era auxiliado pela cultura existente na Líbia e em outros países da região, na qual a mulher é dependente do pai, do irmão, do marido. Esse sistema cultural o ajudou a cometer os crimes. É tabu. A vítima que foi estuprada é considerada culpada pela família. Trata-se de uma desonra para seus parentes. O estupro não é cultural, mas é facilitado por um contexto de impunidade, já que a mulher estuprada não pode falar com ninguém porque acaba com a honra da família. Kadafi usou essa arma do silêncio a seu favor."


Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Hoje um dos maiores conflitos ocorre na Síria, de onde milhares de pessoas migram para fugir da guerra. Como está a questão da mulher por lá?"
Annick Cojean: "Esse movimento migratório está mexendo com toda a Europa. Não sabemos como isso será resolvido. Acredito que se trata do maior desafio do tipo desde as migrações provocadas pela Segunda Guerra Mundial. Nunca houve um movimento tão grande que tive na Líbia me dá a certeza de que o estupro é a arma de destruição em massa mais usada nesses conflitos. E ela também é usada na Síria pelo regime. Há relatos de estupros coletivos nas casas, nos vilarejos, e ainda mulheres que são levadas para a prisão  e estupradas lá. E muito pouco se fala sobre isso."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Por que há tanto silêncio?"
Annick Cojean: "Pela mesma questão de honra que há na Líbia. As mulheres não falam porque, quando saem da prisão, têm medo de desonrar a família, o marido. Há diversas pessoas que deixaram determinadas regiões da Síria por conta da incidência de estupros. Mas os refugiados também não falam do assunto. Silêncio total."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Você falou sobre a prática do regime sírio. Isso também ocorre com os integrantes do Estado Islâmico?"
Annick Cojean: "Com certeza. E é ainda pior quando eles chegam e conquistam vilarejos, afirmam que têm direito de estuprar as mulheres e depois disponibilizá-las nos mercados de escravos."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Por que você acredita que a imprensa mundial dá pouco ou nenhum destaque para histórias como essas?"
Annick Cojean: "Quando a gente aborda assuntos como guerras, revoluções, a história em si, é sempre um olhar do homem. Ouvimos muito falar sobre a Guerra do Vietnã, conflitos na África, mas sempre a visão masculina. E as grandes guerras, então? As mulheres são praticamente metade da população e são ignoradas, elas simplesmente não existem. Isso é tão injusto. E acontece em pleno 2015, não estamos na Idade Média ou na Idade da Pedra. Estamos no século 21 e o estupro é uma das principais armas utilizadas em todos os lugares onde há conflitos, no mundo todo."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "No Brasil, neste ano a prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) teve como tema a persistência de casos de violência contra a mulher. Isso gerou polêmica enorme, inclusive com manifestações de políticos que repudiaram o tema da prova. O que você acha disso?"
Annick Cojean: "Não tinha ouvido falar sobre isso. A respeito do Brasil, o que se aborda muito lá fora é a legislação sobre o aborto. Acreditava que agora, por vocês terem uma presidente mulher, a Dilma (Rousseff - PT), o assunto ganharia mais voz e seria regulamentado. Mas não foi assim. Agora, sobre essa prova, me causa surpresa. Temos um correspondente do Le Monde no Brasil que já escreveu sobre temas de política, situação econômica, corrupção, mas ainda não discutiu o feminismo. Vou pedir para o jornal me mandar para trabalhar no tema por aqui. (risos)."

Camila Galvez (DIÁRIO do GRANDE ABC): "Como é a questão do feminismo na França?"
Annick Cojean: "No meu país as mulheres tinham falsa sensação de que já haviam adquirido todos os direitos. O que vejo hoje é uma volta movimento feminista. A nova geração está pronta para lutar por aquilo que acha justo. Tem gente que quer discutir novamente a legislação do aborto (que é legalizado na França), mudar as coisas. Acredito que essa nova geração vai lutar mais porque ainda há direitos a serem adquiridos. Também temos diferença de salários entre homens e mulheres, e ausência delas nos cargos importantes. Nosso teto de vidro são os cargos públicos. No Parlamento não temos ainda a mesma representatividade. No retorno das discussões, também entra a questão dos imigrantes e do aumento do islamismo na França. É um momento em que as pessoas se preocupam mais com isso. Vejo muitas mulheres dizerem que são feministas, mas usam véu, até burca. Não consigo associar uma coisa com a outra. Mas sei que as mulheres precisam se manter unidas para conquistar seu lugar no mundo. Disso não tenho dúvidas."


A entrevista acima foi retirada do jornal DIÁRIO DO GRANDE ABC - VERSÃO DIGITAL - Ano 58 - nº 16335, pág. 4. Setecidades. 16 de setembro de 2015, segunda-feira (Acesso: 17/11/2015)


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