ARTUR TIMERMAN DIZ "É IMPOSSÍVEL ACABAR COM O MOSQUITO"


"Para o infectologista, a capacidade de adaptação do Aedes aegypti é tão grande que erradicá-lo é estratégia inútil. O bom caminho para diminuir o pânico com os casos de zika associados à microcefalia é o investimento pesado em estudos para o desenvolvimento de uma vacina"


Por: Adriana Dias Lopes

"Há pelo menos três décadas o infectologista paulistano Artur Timerman, de 62 anos, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses, lida com os vírus transmitidos pelo Aedes aegypti. Desde outubro do ano passado, com o início do aumento de casos de infecção por zika, ele tornou-se nome inescapável para entender como um mosquito foi capaz de assustar a sociedade moderna do século XXI. Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou os casos de microcefalia e doenças neurológicas em áreas como o zika vírus como 'emergência internacional'. Não proibiu viagens, mas sugeriu imediata aceleração das pesquisas em burca de compreensão total da malformação de fetos e de uma vacina. Timerman é o profissional mais adequado para medir claramente o alcance da epidemia, identificar onde houve erro e apontar os pontos de inépcia do governo federal. E, para não deixar dúvida de que o vírus é realmente preocupante para as mulheres grávidas, ele revela ter pedido à própria filha que não engravidasse."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "A emergência mundial declarada pela OMS não é exagerada?"
Artur Timerman: "É natural que o ineditismo da situação estimule o alarde. Nunca na história da medicina houve uma doença transmitida por um vetor associada à malformação fetal. E esse alvoroço não é em vão. Ele é útil, fundamentalmente, para acelerar o interesse das autoridades políticas e médicas em investir em pesquisas consistentes sobre o assunto."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "Sabemos que, em decorrência natural da evolução da espécie, a ação de um vírus tende a ser amenizada com o passar do tempo. Essa constatação não é tranquilizadora?"
Artur Timerman: "Em termos. Ao longo dos anos, tanto o organismo adquire formas de se proteger do vírus como o próprio agente se torna menos agressivo. Isso aconteceu até mesmo com o terrível e mortal HIV, por exemplo, causador da aids. Independentemente dos medicamentos, o sistema imunológico do doente hoje convive melhor com o próprio vírus. No entanto, e aí está o problema, essa mudança leva décadas para acontecer. Não dá para correr nenhum risco com um vírus associado a uma doença de malformação em crianças."


Adriana Dias Lopes (VEJA): "Ao se trapaçarem as curvas de aumento de infecção por zika e de crescimento de microcefalia, elas são, de fato, coincidentes. Mas não há, até agora, evidências definitivas de casualidade na relação entre o vírus e a doença. Não seria cedo para defender essa associação?"
Artur Timerman: "As pesquisas já indicam fortemente essa ligação. No início da década de 50, estudos desenvolvidos pelo Instituto Pasteur, na França, comprovaram a afinidade do zika com o tecido nervoso de camundongos. Neste ano, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, nos Estados Unidos, encontrou pedaços do vírus em fetos abortados e em amostras de líquido amniótico. É claro, porém, que temos de ter estudos que sigam as regras básicas da boa ciência. Os achados só se tornam irrefutáveis quando são provenientes de estudos clínicos controlados, envolvendo milhares de voluntários infectados e sadios."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "Uma pesquisa de tal magnitude dificilmente trará bons resultados se os governos federal e estaduais continuarem a empregar critérios dispares para o diagnóstico de microcefalia associada ao vírus..."
Artur Timerman: "É uma falha inaceitável. Vivemos um caos nesse campo. Há regiões que contabilizam todos os casos suspeitos da doença. Outras, porém, registram a doença somente quando a mãe afirmou ter sofrido os sintomas durante a gestação - o que ocorre em apenas 20% dos casos de infecção por zika. O fato é: não há um padrão nas notificações, e isso impossibilita qualquer trabalho científico."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "Como deve ser o registro dos casos de microcefalia?"
Artur Timerman: "Defendo um protocolo único. Todo e qualquer caso de microcefalia deve ser notificado, eliminando-se, claro, as causas já conhecidas - mesmo que não se tenha certeza de que ele possa estar relacionado ao zika. Foi assim com a aids. Na década de 80, durante três anos, notificávamos todos os casos de pessoas acometidas por pneumonia, gânglios inchados e alteração imunológica, apenas suspeitando de uma associação com o vírus HIV. A medida era protocolar. Por termos pecado pelo excesso, pessoas que nem imaginávamos pertencer ao grupo de risco do HIV foram identificadas, como os heterossexuais."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "A microcefalia só se tornou uma doença de registro compulsório em novembro do ano passado, no Brasil. Com base nisso, não seria lógico imaginar uma subnotificação de casos até então?"
Artur Timerman: "Muito dificilmente. Os casos notificados hoje estão dissociados de outras causas da doença, como toxoplasmose, citomegalovírus, herpes e rubéola. Ao menos essa é a recomendação do Ministério da Saúde. A cada dia, recebo relatos de profissionais das mais variadas áreas da saúde, sobretudo do Nordeste do país, afirmando ver cinco, dez bebês com microcefalia por dia. Essa situação seria inimaginável há um ano."


Adriana Dias Lopes (VEJA): "Por que não há ainda um teste eficaz para ser usado em larga escala na detecção do zika?"
Artur Timerman: "Por incompetência do governo federal. Nossos virologistas são muito bons. Mas não recebem verba necessária para pesquisa. Não há investimento porque ciência básica não dá voto. Há cientistas de universidade federais no Nordeste que têm de pedir reagentes emprestados para trabalhar. E sem um teste em larga escala não conseguimos decifrar o comportamento do vírus no organismo. É o que chamamos de fisiopatogenia, na linguagem médica. Precisamos de um teste que identifique os anticorpos no sangue, produzidos pela infecção. Os anticorpos permanecem para o resto da vida no sangue. Só assim conseguiremos rastrear a doença, independentemente de quando ela ocorreu. Sem esse tipo de exame, não será possível dar um passo em direção ao desenvolvimento de uma vacina eficaz. Hoje, diagnosticamos a infecção por zika por meio de um exame genético, que rastreia a doença somente durante a fase aguda da infecção. Ou seja, cerca de uma semana após a picada, ao longo de cinco de dias. Já estava mais do que na hora de termos um teste de anticorpos. No caso da dengue, foram necessários dois anos para a criação desse tipo de teste. Mas isso foi lá nos anos 80, tempos em que os conhecimentos científicos eram limitados. Hoje, um teste desse tipo não levaria mais de seis meses para ser desenvolvido."


Adriana Dias Lopes (VEJA): "Não é inconcebível que um mosquito cujo potencial de transmitir doenças se conhece há pelo menos 100 anos ainda desafie a ciência?"
Artur Timerman: "O papel da ciência não é acabar com o Aedes. É impossível acabar com o mosquito. O Aedes tem uma capacidade de adaptação biológica sofisticada, superior à de qualquer inseto. Há menos de dez anos, ele se reproduzia apenas em poças grandes, de meio litro, constituídas de água limpa. Hoje, basta uma quantidade equivalente a uma tampinha de água - limpa e suja. O Aedes sempre teve um comportamento diurno, atraído pela luz do sol, e já o vemos durante a noite, em torno de luz artificial. Suas larvas sobreviviam por três meses. Agora, o tempo é quatro vezes maior. Seu voo atingia a distância de 10 metros. São 50 metros atualmente. Essa capacidade extraordinária de sobrevivência sempre driblará qualquer tecnologia."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "É impossível, portanto, eliminar o Aedes aegypti?"
Artur Timerman: "Não costumo ser pessimista, mas nesse caso terei de dizer: é praticamente impossível eliminá-lo. O problema está lá atrás, com a urbanização caótica das grandes cidades, sobretudo nos países da América Latina, erguidas sobre asfaltos impermeáveis, com pouquíssima vegetação e repletas de lixo e esgoto a céu aberto. O papel da ciência é importante, mas paliativo. Ela servirá para eliminar ou evitar as consequências trazidas pelo mosquito. As medidas podem ser válidas, mas apenas reduzirão os danos."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "Na semana passada, a fim de eliminar eventuais focos de reprodução do Aedes, foi autorizada a entrada forçada de agentes de saúde em imóveis públicos e particulares em caso de abandono ou na ausência de pessoa que possa permiti-la. Não é uma postura autoritária?"
Artur Timerman: "O governo tem mostrado total despreparo para lidar com o Aedes. Imagine um mundo ideal, em que todas as residências estejam livres do mosquito. Agora, imagine as pessoas saindo de sua casa. Por quantos focos de infecção vão passar? Cerca de 70% dos focos de larvas do Aedes estão ao redor das casas. Era possível atacar esses focos espalhados, sem controle, em cidades menores. Foi assim há quase um século, no combate à febre amarela, também transmitida pelo Aedes. Não há comparação possível, agora. Nosso ministro da Saúde, Marcelo Castro, é uma autoridade política, mas está longe de ser uma autoridade científica. Outra medida absurda há pouco tomada pelas autoridades é o espetáculo proporcionado pelo tal 'fumacê'. Ou seja, agentes vestidos com máscara e equipamento de segurança dedetizando as cidades. Isso não funciona com o Aedes, inseto capaz de se adaptar com rapidez. Esses produtos agem entrando em um túbulo embaixo da asa do mosquito e matando-o por paralisia. O Aedes sente o cheiro do DEET, o principal composto dessas substâncias, e deixa de voar. Sem abrir as asas, ele não morre."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "Os cuidados devem ser redobrados no Carnaval?"
Artur Timerman: "Não há dúvida. É um período de calor, em que as pessoas estão supostamente menos vestidas e suam mais. Os repelentes devem ser repostos a cada hora, portanto. Esse é um tipo de recomendação que não está na bula dos produtos."

Adriana Dias Lopes (VEJA): "O senhor prevê uma epidemia mundial?"
Artur Timerman: "Dificilmente isso vai acontecer. O aumento de casos deverá ficar restrito a países do Hemisfério Sul. Algumas regiões do Norte serão acometidas, mas não haverá grandes surtos. O clima frio dificulta a proliferação do Aedes. Haverá aumento de registros, mas eles estarão limitados à América Latina e ao Caribe."


Adriana Dias Lopes (VEJA): "O que o senhor tem dito para suas pacientes sobre o zika? Quais medidas elas devem tomar?"
Artur Timerman: "Há muitos anos, desde os tempos da aids, eu não vivia uma situação tão angustiante no meu dia a dia profissional. A cada semana, recebo em meu consultório pelo menos uma dezena de mulheres angustiadas. Infelizmente, só posso responder às questões delas de forma monossilábica. 'Se eu engravidar agora, corro risco de ter zika?' Sim. 'Corro o risco de transmitir o vírus para o feto?' Sim. 'Se isso acontecer, ele pode ter microcefalia?' Sim. Desaconselho veementemente uma gestação, até que consigamos conhecer um pouco mais esse vírus. Fiz isso em minha própria casa. Minha filha mais nova queria engravidar agora de seu primeiro filho. Desaconselhei. E fui ouvido."


A entrevista acima foi retirada da revista VEJA - edição 2 464 - Ano 49 - nº 6, págs. 13, 14 e 15. 10 de fevereiro de 2016. Todos os direitos autorais são reservados exclusivamente à revista VEJA e a Editora Abril.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog