DOSSIÊ CHOCOLATE:
DO XOCOLATL DOS ASTECAS ÀS CHOCOLATIERS DA BÉLGICA: A SAGA, A CIÊNCIA E OS SEGREDOS DO ALIMENTO DOS DEUSES"

Você gosta de chocolate? Provavelmente, sua resposta foi sim. Dos mais simples às obras de artes gourmet. Dos chocolates branco, ao leite e o amargo. Dos bombons diversos às trufas de inúmeros sabores. E não poderia faltar, é claro, do chocolate símbolo da Páscoa: o de ovos diversos de chocolates. Não importa de onde você é, a paixão é a mesma. Difícil seria encontrar alguém que nunca tenha provado dessa guloseima doce e não tenha gostado. Chocolate pode entrar até mesmo nos produtos de higiene pessoal e cuidados com a pele, como cremes corporais, perfumes e até mesmo, sabor de creme dental. E tem até especialistas que afirmam que ele faz muito bem para a saúde. Então, nada melhor do que saber de onde e como surgiu esse doce incrivelmente amado não só pelos brasileiros, como também pelas populações de todos os continentes da Terra. Bem-vindo ao DOSSIÊ CHOCOLATE: DO XOCOLATL DOS ASTECAS ÀS CHOLATIERS DA BÉLGICA: A SAGA, A CIÊNCIA E OS SEGREDOS DOS ALIMENTOS DOS DEUSES. Vamos contar ao longo de cinco capítulos, toda a história deste alimento incrível que é o chocolate, e te levar ainda mais ao encontro de seu amor por esta guloseima que vêm do cacau. Depois de ler cada matéria desse DOSSIÊ CHOCOLATE, tenho certeza que você irá terminar com muita vontade de comer chocolate. Então, bom apetite!

CAPÍTULO 1


NOBRES DAS CIVILIZAÇÕES PRÉ-COLOMBIANAS FAZIAM FESTAS E SACRIFÍCIOS EMBALADOS PELOS PRIMEIROS CHOCOLATES DA HISTÓRIA


Prisioneiros de guerras e jovens virgens não faziam planos de longo prazo no Império Asteca. Todos os anos, milhares deles eram sacrificados em rituais sádicos, em que os corações das vítimas eram arrancados com facas para aplacar a ira dos deuses - o que, na prática, era um pedido por mais chuva. Nem as crianças escapavam: quanto mais chorassem antes do golpe final, melhor. Sinal de que a estação seca não era tão seca assim.
Por mais destrutivos que fossem esses rituais, os astecas dominaram a região central do México entre 1325 e 1521 e tiveram importância fundamental na história da alimentação. Foram eles que primeiro impressionaram um europeu, o conquistador espanhol Hernán Costés (curiosamente o próprio algoz dos astecas), com a bebida preferida da elite daqueles índios: o chocolate. Mas, antes de migrar do Novo para o Velho Mundo, o cacau - matéria-prima do chocolate - teve trajetória ilustre entre povos ainda mais antigos, acompanhando banquetes, rituais e até túmulos da nobreza maia, e antes dela dos olmecas, e antes deles uma comunidade misteriosa da América Central: a primeira a ter a ideia de transformar o fruto do cacueiro em bebida. Mas que ainda não era o chocolate.


No princípio, era a birita. O primeiro fruto do cacau bebido nas Américas foi uma intrigante versão de cerveja artesanal (5% de álcool) produzida pela fermentação de sua polpa doce. É exatamente o que sugere um estudo da Universidade da Pensilvânia, com vasilhas de cerâmica datadas entre 1400 a. C. e 110 a. C., de um sítio arqueológico de Honduras. "Os resultados foram espantosos", afirmou Patrick McGovern, um dos autores. "Todas as vasilhas deram resultado positivo para teobromina". Esse alcaloide, primo da cafeína, é a impressão digital do cacau. E o formato das vasilhas, semelhante ao de recipientes de bebida de outros povos, apontada para a natureza alcoólica de seu conteúdo.
Embora a identidade do que povo que as embriagava ali seja um mistério, a revelação do que eles bebiam é importante. Explica qual deve ter sido a inspiração para que os olmecas, cerca de 500 anos depois, procurassem outras formas de fazer a bebida com o cacau e experimentassem fermentar não a polpa, mas as sementes.
Esses índios criaram a primeira grande civilização da América Central, no sul do México. Deixaram impressionantes cabeças humanas de 10 toneladas, inventaram um jogo tataravô do futebol e tinham uma atividade agrícola impressionante. No comércio, os olmecas usavam pó de cacau como moeda, e a mesma teobromina foi descoberta em recipientes desse povo; dessa vez, com formatos não associados à bebida alcoólica. Era o primeiro chocolate.
A influência dos olmecas foi tão grande entre os povos vizinhos que levou o hábito de beber chocolate para uma civilização mais bem documentada e com maior repercussão na história da humanidade: os maias. Como você vai ver a seguir.

CHOCOLATE COM PIMENTA

O mundo não acabou em 2012 como eles supostamente previam. Mas isso não quer dizer que faltasse sabedoria a esses pré-colombianos, chamados pelos historiadores de "os gregos do Novo Mundo". Os maias (que tiveram seu período clássico entre os anos 200 e 900) eram bons de arquitetura, matemática - foram pioneiros da criação do zero, representado como um cesto vazio - e deixaram uma literatura rica, escrita em ranhuras feitas em papel de casca de figueiras. Em uma dessas obras, o Códice de Madrid, um painel exibe deuses furando as orelhas com lâminas, e o sangue respingando sobre um cacau.
O chocolate que esse povo bebia ainda era distante daquele que você pede na padaria para acompanhar o pão na chapa. Mas já havia ali todo um sistema de processamento da semente do cacau que, sim, deixou herança para a manufatura dos dias de hoje. Depois que a amêndoa (como também é chamada essa semente) era fermentada, seca, tostada e moída - até aqui, os mesmos passos do processo atual -, a pasta resultante era misturada com água, pimenta, mel e farinha de milho.
Mais uma vez, o chocolate ali era uma bebida de elite, que acompanhava a nobreza até nos túmulos. E sua semente era presença obrigatória em momentos mais felizes também: nas cerimônias de casamento, os noivos trocavam cinco sementes de cacau como hoje trocam alianças. Um sinal mútuo de aceitação. E de valorização do produto.


"Reis maias vitoriosos exigiam pesados tributos em cacau das tribos conquistadas, que colhiam o fruto", explica o americano Mort Rosenblum, autor de Chocolate - Uma saga agridoce preta e branca. Falando sobre as terras ricas em produção entre o México e a Guatemala, o escritor afirma: "Em essência, esses cinturões de cacau equivaliam à Casa da Moeda maia, onde o dinheiro dava em árvore".


O DEUS DO CHOCOLATE

Se para os maias o cacau servia como artigo valioso para transações comerciais, para os astecas era mais que isso: era a moeda oficial do reino. A maior parcela das sementes constituía um tesouro nacional e pagava inclusive o salário dos militares. Comprava-se um escravo com 100 sementes; um programa com uma prostituta custava até 10. A parte que não virava grana era moída e transformada em chocolate, mais acessível à alta sociedade - que, embora gostasse de sacrifícios humanos, tinha seu lado festeiro. Como conta o antropólogo francês Jacques Soustelle, autor de Daily Life of the Aztecs (A vida cotidiana dos astecas): "Os banquetes prosseguiam até a madrugada, com danças e canções, e a festa só terminava de manhã, depois da última taça do perfumado chocolate, cheirando a mel e baunilha".
Os astecas chamavam sua bebida de "xocolati", junção das palavras "xococ" (amargo) e "alt" (bebida). Ou seja, o nome da coisa é um fóssil linguístico - uma palavra asteca que acabou ressuscitada em praticamente todos os idiomas do planeta.


Eles também eram religiosos: tinham crenças complexas em diversos deuses, que representavam as forças da natureza. Inclusive adoravam um deus do chocolate. Era Quetzalcoatl, que, segundo acreditavam, trouxe o cacau direto do jardim do Paraíso. Os súditos de Montezuma, o grande rei asteca, ainda não sabiam, mas a adoração a esse deus teria influência direta no genocídio que varreria o império do mapa. Conforme a mitologia, Quetzalcoatl teria entrado em atrito com outro deus e fugido numa jangada entrelaçada de serpentes. Mas com a promessa de que voltaria, no ano de 1519.
E eis que justamente nesse ano surge um ser extraordinário, vindo do mar, como previam os ancestrais - sobre uma "casa flutuante" e cavalgando animais que os astecas nunca tinham visto: não havia cavalos ainda nessa parte do mundo. Os astecas celebraram a volta triunfal de seu deus do chocolate e o receberam com submissão e parentes. Hérnan Cortés não podia esperar melhor recepção. E reagiu seguindo o instinto do conquistador que era: em apenas dois anos, saqueou, matou e dizimou um império de dois séculos.

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